quinta-feira, 25 de abril de 2013

Renúncia


Renúncia

Por

Ayya Khema

Tradução

Davi Coêlho



Para poder embarcar no caminho espiritual completamente, para ser capaz de crescer nele e trilhá-lo com um sentimento de segurança, é preciso que renunciemos. Renúncia não significa necessariamente cortar nosso próprio cabelo e usar os mantos de um monge. Renunciação significa se desprender de todas as ideias e esperanças que a mente gostaria de se interessar e investigar, de se apegar e reter para si. A mente quer ter mais do que quer que seja que esteja disponível. Se ela não consegue ter mais, então ela cria fantasias e imaginações e as projeta sobre o mundo. Isso nunca trará a verdadeira satisfação, paz interior, que só pode ser ganha pela renunciação. “Desprender” é a palavra chave para o caminho budista, o desaparecimento do desejo. Devemos chegar à compreensão de uma vez por todas de que “mais” não é “melhor”. É impossível chegar a um fim de “mais”, pois sempre há algo que vai além. Mas certamente é possível chegar a um fim de “menos”, que é uma abordagem muito mais sensata.

Porque devo sentar-me em recolhimento na meditação e estragar a chance de aproveitar todas as oportunidades que o mundo oferece para o divertimento? Podemos viajar ou trabalhar em um emprego desafiador, conhecer pessoas interessantes, escrever cartas ou ler livros, e desfrutar de prazerosos momentos em algum outro lugar e realmente nos sentirmos a vontade – podemos até encontrar um outro caminho espiritual. Quando a prática da meditação não é bem sucedida, o pensamento pode surgir: “O que estou realmente fazendo, porque eu estou fazendo isso, pra quê, qual é o propósito disso?” Então a ideia surge: “Eu não consigo fazer isso muito bem, talvez eu deva tentar outra coisa”.

O mundo brilha e promete tanto, mas nunca – nunca – mantém suas promessas. Todos nós já experimentamos algumas de suas tentações, e nenhuma delas nunca foi realmente satisfatória. A verdadeira satisfação, a plenitude da paz, não carecer de mais nada, a totalidade de estar à vontade e não querer mais nada, não pode ser conquistada no mundo. Não há nada nele que possa preencher nossos desejos por inteiro e plenamente. Dinheiro, pertences materiais, encontrar outra pessoa, algumas dessas coisas podem nos satisfazer muito. Mas mesmo assim, sempre há aquela vozinha atiçando uma dúvida em nossas mentes: “Talvez eu ache algo a mais, mais confortável, mais à vontade, que não seja tão exigente, e acima de tudo, algo novo”. Afinal, tudo aquilo que é novo sempre aparenta prometer satisfação.

A mente deve ser compreendida por aquilo que é – apenas mais um sentido (entre os outros cinco) – que tem o cérebro como sua base, assim como a visão tem o olho como a base. Conforme os momentos-mentais surgem e contanto é feito com eles, começamos a acreditar o que estamos pensando e até sentimo-nos donos daquilo: “É meu”. E por causa disso, ficamos realmente interessados em nossos pensamentos e queremos cuidar deles. É uma conclusão óbvia de que as pessoas cuidam melhor de seus pertences do que elas cuidam dos pertences dos outros, portanto seguimos mais nossos indivíduos momentos-mentais e cremos neles todos. E mesmo assim eles nunca trarão felicidade. O que eles trazem são esperança e preocupação e dúvida. Ás vezes eles fornecem entretenimento e outras vezes depressão. Quando dúvida surge e nós a seguimos e acompanhamos, ela pode nos levar ao ponto onde não há mais prática qualquer. A prova do sabor do pudim está em comê-lo. Ninguém poderá prová-lo a não ser nós mesmos; querer prova vinda de fora, para que tudo o que possa fazer é se apossar dela e se nutrir com isso não é uma abordagem correta.

A satisfação que estamos procurando não é o que conseguimos obter e encher neste corpo e mente. O tamanho do buraco é grande demais para ser preenchido. O único modo que podemos encontrar satisfação é nos desprender de expectativas e desejos, de tudo o que se passa na mente, para que nada esteja faltando. Daí não haverá nada a ser preenchido.

O equívoco que ocorre vez após vez é a atitude típica de: “Eu quero coisas pra mim. Eu quero conhecimento, sabedoria, amor, consideração. Eu quero receber uma iluminação espiritual.” Não há nada que possa ser dado, exceto instruções e métodos. Precisamos fazer o trabalho diário da prática para que a purificação possa acontecer. A carência de satisfação não pode ser remediada pelo desejo de querer ser apresentado com algo novo. Nem temos certeza de onde isso viria. Talvez do Buda, talvez do Dhamma, ou talvez desejamos isso de nosso instrutor. Possivelmente gostaríamos que isso viesse de nossa meditação, ou de um livro. A resposta não está em conseguir algo que venha de fora de nós mesmos, mas sim em descartar todas as outras coisas.

Do que você precisa se livrar? De preferência, as convulsões da mente que constantemente nos contam histórias que são fantásticas e inacreditáveis. E mesmo assim, quando as ouvimos, acreditamos nelas. Uma forma de olhar pra elas e desacreditá-las é anotá-las. Elas soam absurdo quando escritas em papel. A mente sempre consegue pensar sobre novas histórias, não há um fim para elas. Renúncia é a chave. Abrir mão, se desprender.

Abrir mão também significa dar ouvidos àquela intuição subjacente e subconsciente de que o modo como o mundo funciona não dá certo, que há outro meio diferente. Nós não podemos tentar permanecer no mundo e acrescentar algo a nossas vidas, mas ao invés disso abrir mão de nossas ambições por completo. Permanecer do jeito que somos e depois adicionar algo a nós mesmos – como isso poderia funcionar? Se tivermos uma máquina que já não é mais funcional e adicionamos outra parte a ela, não vai fazer com que ela funcione. Temos, ao invés disso, que inspecioná-la por inteiro.

Isso significa aceitar nossa intuição subjacente de que os velhos modos de pensar não são úteis. Há sempre dukkha (sofrimento) vez após vez. Continua voltando, não é mesmo? Às vezes pensamos: “Deve ser por causa de uma pessoa em particular, ou talvez seja por causa do clima.” E então o clima muda ou aquela pessoa vai embora, mas dukkha ainda está presente. Portanto, não era aquilo e então temos que tentar encontrar outra coisa. Ao invés disso precisamos nos tornar maleáveis e adaptáveis e prestar atenção àquilo que realmente está surgindo no momento presente, sem todas as convulsões, conglomerações e proliferações da mente. Aquilo que surge pode ser puro ou impuro e precisamos saber como lidar com cada um.

Uma vez que começarmos a explicar e racionalizar, o processo inteiro se perde novamente. Não devemos pensar que podemos acrescentar algo a mais a nós mesmos para nos sentirmos completos. Tudo deve ser retirado, o lote todo identificável, aí sim nos tornamos completos. Renunciação é desprender-se de ideação, dos apetrechos mentais que se declaram ser uma pessoa ciente. Quem está ciente da pessoa que está ciente? Isso são apenas ideias se agitando por dentro, surgindo e desaparecendo. Renúncia não é uma manifestação externa, isso é apenas o resultado. A causa é interna, que é aquela que precisamos praticar. Se pensarmos neste mosteiro de freiras como um local para meditação, então veremos que a meditação não pode acontecer sem renúncia


Este texto foi retirado do livro All of Us: Beset by Birth, Decay and Death, e pode ser encontrado em inglês no endereço: http://www.accesstoinsight.org/lib/authors/khema/allofus.html#ch7