Renúncia
Por
Ayya Khema
Tradução
Davi Coêlho
Porque devo sentar-me em
recolhimento na meditação e estragar a chance de aproveitar todas as
oportunidades que o mundo oferece para o divertimento? Podemos viajar ou
trabalhar em um emprego desafiador, conhecer pessoas interessantes, escrever
cartas ou ler livros, e desfrutar de prazerosos momentos em algum outro lugar e
realmente nos sentirmos a vontade – podemos até encontrar um outro caminho
espiritual. Quando a prática da meditação não é bem sucedida, o pensamento pode
surgir: “O que estou realmente fazendo, porque eu estou fazendo isso, pra quê,
qual é o propósito disso?” Então a ideia surge: “Eu não consigo fazer isso
muito bem, talvez eu deva tentar outra coisa”.
O mundo brilha e promete tanto, mas nunca – nunca – mantém suas promessas.
Todos nós já experimentamos algumas de suas tentações, e nenhuma delas nunca
foi realmente satisfatória. A verdadeira satisfação, a plenitude da paz, não
carecer de mais nada, a totalidade de estar à vontade e não querer mais nada,
não pode ser conquistada no mundo. Não há nada nele que possa preencher nossos
desejos por inteiro e plenamente. Dinheiro, pertences materiais, encontrar outra
pessoa, algumas dessas coisas podem nos satisfazer muito. Mas mesmo assim,
sempre há aquela vozinha atiçando uma dúvida em nossas mentes: “Talvez eu ache
algo a mais, mais confortável, mais à vontade, que não seja tão exigente, e
acima de tudo, algo novo”. Afinal, tudo aquilo que é novo sempre aparenta
prometer satisfação.
A mente deve ser compreendida por aquilo que é – apenas mais um sentido (entre
os outros cinco) – que tem o cérebro como sua base, assim como a visão tem o
olho como a base. Conforme os momentos-mentais surgem e contanto é feito com
eles, começamos a acreditar o que estamos pensando e até sentimo-nos donos
daquilo: “É meu”. E por causa disso, ficamos realmente interessados em nossos
pensamentos e queremos cuidar deles. É uma conclusão óbvia de que as pessoas
cuidam melhor de seus pertences do que elas cuidam dos pertences dos outros,
portanto seguimos mais nossos indivíduos momentos-mentais e cremos neles todos.
E mesmo assim eles nunca trarão felicidade. O que eles trazem são esperança e
preocupação e dúvida. Ás vezes eles fornecem entretenimento e outras vezes
depressão. Quando dúvida surge e nós a seguimos e acompanhamos, ela pode nos
levar ao ponto onde não há mais prática qualquer. A prova do sabor do pudim
está em comê-lo. Ninguém poderá prová-lo a não ser nós mesmos; querer prova
vinda de fora, para que tudo o que possa fazer é se apossar dela e se nutrir
com isso não é uma abordagem correta.
A satisfação que estamos procurando não é o que conseguimos obter e
encher neste corpo e mente. O tamanho do buraco é grande demais para ser
preenchido. O único modo que podemos encontrar satisfação é nos desprender de
expectativas e desejos, de tudo o que se passa na mente, para que nada esteja
faltando. Daí não haverá nada a ser preenchido.
O equívoco que ocorre vez após vez é a atitude típica de: “Eu quero
coisas pra mim. Eu quero conhecimento, sabedoria, amor, consideração. Eu quero
receber uma iluminação espiritual.” Não há nada que possa ser dado, exceto
instruções e métodos. Precisamos fazer o trabalho diário da prática para que a
purificação possa acontecer. A carência de satisfação não pode ser remediada
pelo desejo de querer ser apresentado com algo novo. Nem temos certeza de onde
isso viria. Talvez do Buda, talvez do Dhamma, ou talvez desejamos isso de nosso
instrutor. Possivelmente gostaríamos que isso viesse de nossa meditação, ou de
um livro. A resposta não está em conseguir algo que venha de fora de nós
mesmos, mas sim em descartar todas as outras coisas.
Do que você precisa se livrar? De preferência, as
convulsões da mente que constantemente nos contam histórias que são fantásticas
e inacreditáveis. E mesmo assim, quando as ouvimos, acreditamos nelas. Uma
forma de olhar pra elas e desacreditá-las é anotá-las. Elas soam absurdo quando
escritas em papel. A mente sempre consegue pensar sobre novas histórias, não há
um fim para elas. Renúncia é a chave. Abrir
mão, se desprender.
Abrir mão também significa dar ouvidos àquela
intuição subjacente e subconsciente de que o modo como o mundo funciona não dá
certo, que há outro meio diferente. Nós não podemos tentar permanecer no mundo
e acrescentar algo a nossas vidas, mas ao invés disso abrir mão de nossas
ambições por completo. Permanecer do jeito que somos e depois adicionar algo a
nós mesmos – como isso poderia funcionar? Se tivermos uma máquina que já não é
mais funcional e adicionamos outra parte a ela, não vai fazer com que ela
funcione. Temos, ao invés disso, que inspecioná-la por inteiro.
Isso significa aceitar nossa intuição subjacente de
que os velhos modos de pensar não são úteis. Há sempre dukkha (sofrimento) vez após vez. Continua voltando, não é mesmo? Às
vezes pensamos: “Deve ser por causa de uma pessoa em particular, ou talvez seja
por causa do clima.” E então o clima muda ou aquela pessoa vai embora, mas dukkha ainda está presente. Portanto,
não era aquilo e então temos que tentar encontrar outra coisa. Ao invés disso
precisamos nos tornar maleáveis e adaptáveis e prestar atenção àquilo que
realmente está surgindo no momento presente, sem todas as convulsões,
conglomerações e proliferações da mente. Aquilo que surge pode ser puro ou
impuro e precisamos saber como lidar com cada um.
Uma vez que começarmos a
explicar e racionalizar, o processo inteiro se perde novamente. Não devemos
pensar que podemos acrescentar algo a mais a nós mesmos para nos sentirmos
completos. Tudo deve ser retirado, o lote todo identificável, aí sim nos
tornamos completos. Renunciação é desprender-se de ideação, dos apetrechos
mentais que se declaram ser uma pessoa ciente. Quem está ciente da pessoa que
está ciente? Isso são apenas ideias se agitando por dentro, surgindo e
desaparecendo. Renúncia não é uma manifestação externa, isso é apenas o
resultado. A causa é interna, que é aquela que precisamos praticar. Se
pensarmos neste mosteiro de freiras como um local para meditação, então veremos
que a meditação não pode acontecer sem renúncia
Este texto foi retirado do livro All of Us: Beset by Birth, Decay and Death, e pode ser encontrado em inglês no endereço: http://www.accesstoinsight.org/lib/authors/khema/allofus.html#ch7
Excelente!!! Texto, muito bom mesmo, muito obrigado por compartilhar. é possivel encontrar uma tradução completa para o portugues desse livro no link: http://www.acessoaoinsight.net/arquivo_textos_theravada/todos_nos.php.
ResponderExcluirum abraço e boa prática ai pra vc.
Ah, eu não sabia que este texto já havia sido traduzido. Muito obrigado por me direciona a esta página Luciano. Eu gostaria de focar no momento no que ainda não foi traduzido. Mas pra frente talvez eu faça as minhas traduções daquilo que também já foi traduzido para que possa haver variedade. E sim, muito obrigado por aqueles outros materiais que você me mandou. Abração cara!
Excluirde nada, abraços.
ExcluirOlá,Davi!tudo bem? Parabéns pela continuidade do seu trabalho.
ResponderExcluirOlá,Davi! futuramente,talvez será que você poderia traduzir um texto abrangente sobre a posição das mulheres no Budismo "Theravada"? É que carecemos,em português,de um artigo mais amplo a respeito desse tema.Obrigado e até,mais.
ResponderExcluirSim João. Essa não é a primeira vez que alguém me pergunta isso. Inclusive, já tenho um bom artigo em mente aqui para traduzir que trata sobre este tema em detalhe. Só não prometo colocá-lo tão breve assim porque ele é um pouco longo. Obrigado por comentar. Abraços
ExcluirOlá,Davi! Frequentemente, tenho me deparado com críticos afirmando que o Buda era preconceituoso com relação as mulheres . O argumento que eles usam para justificar está posição remontam à época do Buda. Eles citam como , exemplo, a hesitação do Buda, á princípio, em admitir a fundação da ordem monástica feminina e também o fato de o Buda ter adicionado varias regras ,a mais, para às mulheres. Penso que o buda tinha bons motivos para se opor ,de incio, ao estabelecimento da comunidade monástica feminina, mas essas motivações, ao meu ver, não tinham nada haver com o preconceito! A minha preocupação é que essas críticas mau embasadas (que não levam em conta o contexto social da época e a posição ou condição das mulheres na antiga India e os problemas que o Buda teria de efrentar e contornar!) possam levar algumas pessoas a se afastarem do "Dhamma" caso esse equívoco, não sejá, resolvido.
ResponderExcluirEu tenho a impressão que,Ayya Khema, ele era um Arahant!adoro as palestras,dela!Até mais,Davi.
ResponderExcluirOh, eu tenho a certeza que ela era uma Arahant. Há uma entrevista com ela no youtube, em que ela não fala isso com todas as letras, mas a entrevista se tratava a respeito da morte em geral, e nessa entrevista ela relata sua experiência próxima com a morte quando estava internada num hospital com câncer de mama. Ela conta que após ter se recuperado dessa doença, ela acordou para o fato de que precisava terminar sua prática. E quando a repórter perguntou para ela sobre como ela se sentia agora em relação com a morte, ela disse que não temia mais, que estava pronta, pois havia terminado o trabalho dela, e havia feito o que precisava ser feito. Se olharmos pras escrituras, há apenas um tipo de pessoa que pode dizer isso sobre si mesmo - o próprio Arahant. Abraços.
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