Renascimento
Por
Bhikkhu
Bodhi
Tradução
Davi
Coêlho
(1) Introdução
(2) Budismo
e Hinduísmo comparados
(3) Renascimento
sem uma “Alma transmigratória”
(4) O que
continua de uma vida para outra?
(5) Preservação
da identidade ilustrada
(6) Analogia
da vela
(7) Concepção
(8) Ensinamento
da origem dependente com referência específica ao Renascimento
(9) Desejo
– A Costureira
(10)
O que causa o renascimento em uma determinada
forma?
INTRODUÇÃO
A
questão do destino humano após a morte é provavelmente uma das perguntas mais
críticas que possamos levantar. Nos dias modernos tornou-se costume passar os
olhos por esta questão como sendo de não muita importância. Mas se refletirmos
sobre a extensão que nossos pontos de vista exercem sobre nossas ações, veremos
que é bem essencial ganhar alguma compreensão sobre o contexto inteiro de como
nossas vidas se desdobram. Além disso, nossas opiniões sobre a vida além-túmulo
determinará o que consideramos como sendo importante nesta vida presente.
Três posições sobre o destino
humano após a morte:
Há três
posições possíveis que podem ser adotadas como o destino humano após a morte.
Uma posição, o ponto de vista materialista. Ele simplesmente nega que haja uma
vida após a morte; afirma que o ser humano consiste apenas de matéria orgânica.
Considera, além do mais, que a mente é nada mais que um subproduto da matéria
orgânica e que, após a morte, com a quebra do corpo físico, toda consciência
chega a um fim e o processo vital é completamente extinguido.
A
segunda alternativa é o ponto de vista adotado em religiões teístas Ocidentais,
tais como o Judaísmo, Cristianismo e Islamismo em suas formas ortodoxas. Creem
estes em uma vida eterna após a morte. De acordo com estas religiões, vivemos
uma única vida na terra e após a morte vivemos eternamente em algum estado de
existência determinado pelas nossas presentes crenças e conduta nesta vida.
E então
há o terceiro ponto de vista, que prevalece nas religiões Orientais, Hinduísmo
e Budismo. Esta é a ideia do renascimento. De acordo com esta posição, a vida
presente é apenas uma simples ligação numa corrente de vidas que se estendem de
volta para o passado e adiante no futuro. Esta corrente de vidas é chamada de Samsara.
BUDISMO E HINDUÍSMO COMPARADOS
A
palavra “Samsara” significa literalmente “continuando”, “vagando em”. Significa
o repetitivo ciclo de nascimento, envelhecimento, morte e renascimento.
Agora, apesar
do Budismo e Hinduísmo compartilharem do mesmo conceito de renascimento, o
conceito Budista difere-se em detalhes da doutrina Hinduísta. A doutrina do
renascimento conforme entendida no Hinduísmo envolve uma alma permanente, uma
entidade consciente que transmigra de um corpo para o outro. A alma habita um
dado corpo e após a morte, a alma descarta este mesmo corpo e passa adiante
para assumir outro corpo. O famoso clássico Hindu, o Bhagavad Gita, compara isso a um homem que retira sua roupagem e
coloca outra nova e diferente. Da mesma forma, a alma permaneceria a mesma, mas
o organismo psicofísico que ela assume diferencia-se de uma vida para outra.
O termo
Budista para o renascimento em Pali é “punabhava” que significa “existência
outra vez”. Budismo vê o renascimento não como a transmigração de uma entidade
consciente, mas como a repetida ocorrência de um processo existencial. Há uma
continuidade, uma transmigração de influência, uma conexão causal entre uma
vida e outra. Mas não há uma alma, nenhuma entidade permanente que transmigra
de uma vida para outra.
RENASCIMENTO SEM UMA “ALMA
TRANSIMIGRATÓRIA”
O
conceito de renascimento sem uma alma transmigratória comumente levanta a
questão: Como podemos falar de nós mesmos como tendo vivido vidas passadas se
não há uma alma, nenhuma vida única que passa através de tantas vidas? Para podermos responder isso, temos de entender a
natureza da identidade individual em um único período de vida. O Buda explica
que o que realmente somos é uma combinação unificada e funcional de cinco
agregados. Os cinco agregados dividem-se entre dois grupos. Primeiramente, há
um processo material, que é uma correnteza de energia material. Então há o
processo mental, uma corrente de acontecimentos mentais. Ambas correntes
consistem de fatores sujeitos a surgirem momentaneamente e depois se
dissiparem. A mente é uma série de atos mentais composta de sensações,
percepções, formações mentais e consciência. Estes atos mentais são chamados em
Pali de “cittas”. Cada citta surge,
quebra-se e desaparece. Quando ela desaparece, não deixa nenhum rastro de sua
existência para trás. Não há nenhuma essência nela que permanece após seus
desaparecimento. Mas assim que uma citta quebra-se, imediatamente depois surge
outra citta. Assim, vemos a mente como uma sucessão de cittas, ou séries de
atos momentâneos de consciência.
Agora, quando cada citta desaparece, ela transmite para sua sucessora
quaisquer impressões que foram impressa em si mesma, qualquer experiência por
qual tenha passado. Suas percepções, emoções e força volitiva são transmitidas
para a próxima citta, e assim todas as experiências por qual passamos deixam
sua contínua impressão sobre o fluxo de consciência, sobre o “cittasantana”, o
contínuo da mente. Esta transmissão de influência, esta continuidade causal,
dá-nos a nossa identidade condicionada.
O QUE CONTINUA DE UMA VIDA PARA
OUTRA?
O
organismo físico – o corpo – e o processo mental – a corrente de cittas –
ocorrem numa próxima interconexão. O corpo provê a base física para a corrente
de cittas e o processo mental repousa sobre o corpo como seu instrumento ou
base. Quando a morte chega, o corpo não consegue mais funcionar como a base
para a consciência. Contudo, quando o corpo se quebra ao morrer, a sucessão de
cittas não chega a um fim. Na mente da pessoa que está falecendo acontece um
pensamento final – momento este chamado de “consciência de morte”, que
sinaliza o final completo daquela vida. Então, seguindo a consciência de morte,
surge a primeira citta da próxima vida que surge com o novo e recentemente formado
organismo físico como sua base. O primeiro citta da nova vida continua a
corrente de consciência que passou da vida prévia. A corrente de consciência
não é uma entidade única, mas um processo, e o processo continua. Quando a
corrente de cittas passa para a próxima vida, ela trás o armazenamento de
impressões juntamente consigo.
PRESERVAÇÃO DA IDENTIDADE
ILUSTRADO
Uma
ilustração poderá nos ajudar a compreender como esta preservação da identidade
pode acontecer sem a transmigração de nenhuma entidade “autoidentificável”. Supomos
que temos uma vela acessa às oito horas da manhã. Se voltarmos em uma hora, às
nove, veremos que a vela ainda está acessa e queimando, e dizemos que é a mesma
vela. Esta afirmação é completamente válida do ponto de vista do uso da
linguagem convencional. Mas se
examinarmos esta questão mais detalhadamente, veremos que a cada momento a vela
está queimando diferentes partículas de cera, a cada momento está queimando e
consumindo uma seção diferente do pavio, diferentes partículas de oxigênio.
Assim a cera, o pavio e o oxigênio sendo queimados são sempre diferentes de
momento à momento, e mesmo assim porque os momentos diferentes da chama
ligam-se em um contínuo, um momento da chama dando surgimento a outro, dizemos
que é a mesma chama. Mas na verdade a chama é diferente a cada momento. A chama
em si é um fenômeno inteiramente diferente. Ela é condicionada pela cera, o
pavio e o ar, e aparte destes elementos não há nada.
ANALOGIA DA VELA
Podemos
aplicar esta analogia ao caso do renascimento. O corpo da vela é como o corpo
físico de uma pessoa. O pavio pode ser comparado às faculdades sensoriais que
funcionam como o suporte para o processo da consciência. As partículas de
oxigênio são como os objetos sensoriais e a chama é como a consciência.
Consciência sempre surge com o corpo físico como sua base. Sempre surge também
de acordo com uma faculdade sensorial, e.g. o olho, orelha, nariz, etc. Sempre
tem um objeto, e.g, som, visão, odor, etc. O corpo, faculdade sensorial e o
objeto continuam mudando constantemente e, portanto, assim a consciência e os
fatores mentais estão constantemente mudando. Mas como cada ato mental é
seguido em sequência por outro e transmite seus conteúdos para o próximo, falamos
sobre o composto do corpo e mente como sendo a mesma pessoa. Quando o corpo
perde sua vitalidade e a morte acontece, é como a primeira vela chegando a um
fim. A transmissão da chama para a próxima vela é como a transmissão da
corrente de consciência para a próxima vida. Quando o contínuo mental toma para
si outro novo corpo, isso é como a chama da antiga vela passando para uma nova
vela.
CONCEPÇÃO
O Buda
diz que há três condições necessárias para concepção. Deve haver uma união da
mãe e do pai, o pai para prover o sêmen, a mãe para prover o óvulo. Segundo,
isso deve ocorrer quando o organismo da mãe estiver pronto. Se a mãe não
estiver fértil, a concepção não acontecerá. Terceiro, deve haver uma corrente
de consciência de uma pessoa falecida, o fluxo mental que está pronto e
preparado para renascer. Este terceiro fator é chamado de “gandhabba”. A
não ser que todas estas condições estejam presentes, a concepção não
acontecerá.
O
renascimento acontece automaticamente e inevitavelmente?
Há alguma estrutura causal por trás deste processo de renascimento? Ele continua
automaticamente e inevitavelmente? Ou há algum conjunto de causas que o sustem
e mantém indo? O Buda explica que há
um distinto conjunto de causas por trás do processo de renascimento. Há uma
estrutura causal e ela está detalhadamente explicada no ensinamento sobre
Origem Dependente, “paticcasamupada”.
ENSINAMENTO DA ORIGEM DEPENDENTE
COM REFERÊNCIA AO RENASCIMENTO
Agora
explicaremos o ensinamento da Origem Dependente com referências especificas ao
processo de renascimento.
Primeiramente,
nesta vida há presente em nós a raiz mais básica para qualquer processo de
vir-a-ser, isto é, a ignorância. Por causa da ignorância enxergamos as coisas
de uma maneira distorcida. Por causa destas distorções ou perversões as coisas
aparecem para nós como sendo permanentes, prazerosas, atrativas e como sendo
pertencentes ao nosso “eu”. Por causa destas distorções surge em nós o desejo,
desejo por prazeres sensuais, pela existência, por sons, visões, odores,
sabores, sensações táteis e ideias. Resumindo, há o desejo por sensações
prazerosas. Para podermos experimentar sensações prazerosas precisamos de
objetos agradáveis como sons agradáveis, aromas, etc. Para podermos obter os
prazeres que estes objetos podem nos dar, precisamos fazer contato com eles. Em
outras palavras, precisamos das seis faculdades sensórias, e.g, o olho para
receber luz, a orelha para receber som, etc. Para que as faculdades sensoriais
funcionem, precisamos do organismo psicofísico por inteiro, o complexo corporal
e mental.
Portanto,
por causa do desejo a mente se apega a este organismo atualmente existente
durante todo o tempo em que viver. Mas quando a morte ocorre, o presente
organismo não poderá mais prover a base para a obtenção de prazer através das
faculdades sensoriais. Contudo, ainda há o desejo pelo mundo das visões, sons,
aromas, sabores, toques e ideias. Então, por causa deste desejo pela
existência, a consciência se desprende deste corpo e procura por se apossar de
um novo, um óvulo fertilizado. Ela se aloja neste óvulo fertilizado, trazendo o
armazenamento inteiro de impressões consigo para o novo organismo psicofísico.
Assim dizemos que um novo ser é concebido.
DESEJO –
A COSTUREIRA
Portanto,
o Buda chama o desejo de “a costureira”. Assim como uma costureira consegue
costurar e juntar diferentes pedaços de pano, assim o desejo costura uma vida à
outra. É este quem junta a sucessão de vidas. O desejo é tão poderoso que pode
criar uma ponte entre o espaço criado pela morte e reconstruir a casa inteira
da existência senciente vez após vez.
Através de muitos nascimentos em Samsara eu
perambulei,
Procurando mas não encontrando, o construtor desta
casa. Doloroso é o nascimento repetida vezes.
Oh, Construtor! Avistado você foi! Construir novas
casas não irá.
Todas as tuas vigas foram quebradas, tua cumeeira
espatifada está.
Para dissolução (Nibbana) dirige-se minha mente.
O Fim do Desejo eu atingi.
O QUE CAUSA O RENASCIMENTO EM UMA DATERMINADA FORMA?
Agora
chegamos a nossa próxima pergunta. Vemos uma tremenda variedade de seres vivos
existindo no mundo. Pessoas e animais são os dos mais diferentes tipos. Então
perguntamo-nos o que causa o renascimento em uma forma particular? Isto acontece por
acidente, por chance, sem motivo algum, ou há algum princípio por trás disso? A
resposta que o Buda nos dá para esta pergunta é a palavra em Pali “kamma”. Kamma é o fator que determina a
específica forma de renascimento e é Kamma novamente que determina um bom
número das experiências que passamos durante o percurso de nossas vidas. A
palavra Kamma significa literalmente ação, um feito ou feitio. Mas no Budismo
esta palavra significa atividade volitiva.
O texto original em inglês pode ser encontrado no seguinte endereço: http://www.budsas.org/ebud/ebdha058.htm#R9
O texto original em inglês pode ser encontrado no seguinte endereço: http://www.budsas.org/ebud/ebdha058.htm#R9
Excelente, um texto muito claro e explicativo sobre o assunto, muito obrigado pela tradução.
ResponderExcluirOlá Davi,
ResponderExcluirBoa tradução. Há dois pontos que creio merecem ser comentados.
O primeiro é relativo à "consciência de morte que condiciona a primeira consciência da vida seguinte". Isso dá a entender que não existe um espaço intermediário entre uma vida e outra e que com a morte há um imediato renascimento. Na tradução dos suttas do Anguttara Nikaya o próprio Bikkhu Bodhi já colocou em dúvida essa idéia e argumentou em favor da existência de um estado intermediário (também conhecido como os Bardos).
O segundo ponto diz respeito à concepção ou o momento em que surge uma nova vida. De acordo com o artigo isso ocorre com a junção do óvulo, esperma e o gandhaba que é a consciência que irá renascer. Acontece que nos suttas a consciência sempre é parte dos cinco agregados. Não existe a consciência separada dos agregados, portanto, com a manifestação da consciência também deveria haver a manifestação dos demais agregados. Dessa forma uma das maneiras de saber se a consciência já está presente é justamente através da sensação, ou seja, no momento em que o embrião/feto manisfesta sensações pode haver a certeza que a consciência está presente. Parece óbvio que no momento da concepção, o óvulo fertilizado não manifesta nenhum tipo de sensação e dessa forma fica difícil justificar que a consciência esteja presente. A idéia seria que a fertilização do óvulo é um processo puramente material e que o surgimento da consciência ocorre num momento posterior.
Olá Unknown,
ExcluirMuito perspicaz você é. Sim, eu estava ciente do que você quis dizer no ponto 1 quando estava traduzindo este artigo. Realmente, o Bhikkhu Boddhi aparenta dizer que no caso, uma vida ocorreria imediatamente após a outra.
O que eu esclareceria aqui, e de acordo com meu entendimento, é que esta vida não necessariamente precisa ser material (num corpo físico). No Digha Nikaya 11, há a menção do que o Buda chama "manomaya" ou corpo feito pela mente. Ele dá a comparação de uma espada sendo retirada de sua bainha. Seria como o corpo feito pela mente saindo diretamente do corpo físico. Creio que isso abre um espaço pra interpretações diferentes do que pode acontecer após o momento da morte.
Existe casos de pessoas que se lembram de vidas passadas e contam que entre uma vida física e outra, elas se encontravam em um estado intermediário, mas que continuavam com a mesma forma daquela personalidade anterior logo após o momento da morte física. Isso pode muito bem ser o corpo feito pela mente, como o próprio Buda diz, "completo com todas as suas partes, e não menos inferior em suas faculdades". Há também os casos das experiências de quase morte, em que uma pessoa ao ser declarada clinicamente morta por um médico, ainda sim consegue se ver fora do corpo e mantém intacto os seus sentidos. Isso pra mim é uma indicação do corpo feito pela mente.
Sobre seu segundo comentário, eu discordaria de você em partes. A consciência não é um resultado dos agregados, ela é um dos agregados, claro, ela surge em dependência dos outros, especialmente os 5 sentidos, mas ainda sim é um agregado por si só. Eu tambem discordaria do Bhikkhu Bodhi aqui, pois ele diz que não é possível existir a consciência sem o corpo ou base física. Mesmo assim, há na cosmologia budista os Mundos Imateriais. O próprio termo já sugere que estes seres não tem forma, logo não tem corpo, pois as duas palavras são usadas como sinônimos nos Suttas, e mesmo assim são seres dotados do agregado de percepção, como o próprio nome deles dizem (ex: Devas da Percepção do Espaço Infinito, Devas da Percepção da Consciência Infinita, etc.)
De qualquer forma, ainda acho este um excelente artigo introdutório sobre o conceito budista de renascimento, e creio que ele explica de uma maneira bem simples o conceito de anatta, ou não eu no budismo.
Abraços.
Olá Davi,
ExcluirAntes de mais nada desculpe pela omissão do nome. Não sei bem porque aconteceu isso.
Concordo com as suas observações sobre o corpo feito pela mente (manomaya). Se vc ainda não viu sugiro dar uma olhada na palestra que fiz na Casa de Dharma recentemente.
Quanto à consciência creio que houve um mal entendido, não disse que a consciência é resultado dos agregados mas sim "parte" dos agregados. Agora, em termos de condicionalidade, no processo cognitivo a consciência é condição para os demais agregados.
Abs
Michael
Parabéns,Davi,esse artigo é excelente, muito obrigado pelatradução.
ResponderExcluirEsqueci de mencionar que esse entendimento de uma vida imediatamente em seguida a outra não é idéia do Bhikkhu Bodhi mas tem sua origem no Abhidhamma.
ResponderExcluirMichael
Um dos melhores textos sobre o tema q já li. Obrigado por compartilhar.
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