sexta-feira, 31 de maio de 2013

A Posição das Mulheres no Budismo


A Posição das Mulheres no Budismo
Por
Dra. L.S. Dewaraja
Tradução
Davi Coêlho

Hoje em dia, quando o papel das mulheres em sociedade é uma questão de interesse global, é oportuno parar por um instante e olhar esta questão sobre uma perspectiva Budista. No passado recente, um número de livros foram escritos sobre o estado de mudança das mulheres em sociedades Hindus e Islâmicas, mas em relação às mulheres no Budismo, desde que a distinta acadêmica em Pali, Ms.I.B. Horner, escreveu seu livro Mulheres Sob o Budismo Primitivo por volta da década de 1930, houve muito pouco interesse pelo assunto.

Parece-me, portanto, oportuno levantar novamente esta questão sobre se a posição das mulheres em sociedades Budistas era melhor do que aquelas em sociedades não budistas. Veremos brevemente sobre como era esta posição no Sri Lanca, Tailândia, Birmânia e Tibete, numa época muito antes do impacto causado pelo Ocidente ter sido sentido nestes países.

Hugh Boyd, que veio como um mensageiro para a corte Kandiana em 1872 escreve: [1]

“As mulheres cingalesas exibem um contraste impressionante em relação às outras de todas as Nações Orientais em alguns de seus mais proeminentes e distintos traços de seus caracteres. Ao invés da preguiçosa apatia, modéstia insípida e amarga austeridade, o qual tem caracterizado este sexo através do mundo Asiático, em todo período de sua história, nesta Terra elas possuem uma sensibilidade ativa, encantadora timidez e uma amigável tranquilidade, pelo qual as mulheres da Europa moderna são peculiarmente conhecidas. As mulheres cingalesas não são meras escravas e meretrizes, mas em muitos aspectos são as companheiras e amigas de seus maridos; pois apesar dos homens serem autorizados por lei a controlar suas filhas a subjugação tirânica, ainda sim suas disposições sociáveis e placáveis amaciam o rigor da política doméstica das quais estão sujeitas. E a poligamia sendo desconhecida e o divórcio permitido entre os Cingaleses, os homens não possuem nenhum daquele ciúme constitucional, que deu origem ao libidinoso e covarde despotismo que é praticado sobre o sexo mais frágil nas nações mais iluminadas, e que é sancionado pelas várias religiões da Ásia. Os Cingaleses nem mantém suas mulheres em prisão domiciliar nem impõe a elas nenhuma restrição humilhante.”

A citação acima é apenas uma escolhida de uma série de comentários dos quais observadores Europeus fizeram sobre as mulheres do Sri Lanca. Muitos destes visitantes Europeus vieram às nossas margens durante os séculos 17, 18 e 19. Haviam entre eles mensageiros, missionários, administradores, soldados, médicos e marinheiros naufragados. Eles tiveram conhecimento de primeira-mão das mulheres na Europa e muitos deles vieram através da Índia tendo observado as mulheres em sociedades Hindus e Islâmicas.
Por isso suas evidências são tão valiosas. Os comentários recorrentes feitos por estes visitantes tão viajados sobre as mulheres do Sri Lanca têm evocado nossa curiosidade para conduzir este inquérito. A discussão que segue lidará com a condição que prevalecia até a metade do século 19. Previamente a isso, nossas fontes são tão escassas que não conseguimos detectar nenhuma mudança social qualquer. Após isso, devido ao impacto do imperialismo Ocidental, comercio empresarial e atividade Cristã missionária, mudanças incipientes nas estruturas tradicionais se tornaram perceptíveis.

É apenas nos escritos Europeus que encontramos amplos relatos das condições sociais prevalecendo nesta ilha. A literatura indígena, sendo principalmente religiosa, carece de informação abordando tópicos mundanos como mulheres. Mas de evidências circunstanciais podemos resumir que a atitude liberal em relação às mulheres no Sri Lanca é uma tendência foi contínua desde o passado remoto. Quando pensamos sobre o Oriente tradicional, a imagem que é conjurada em nossas mentes é aquela das mulheres veladas de sociedades Islâmicas, as zenanas onde mulheres Indianas de alta classe viviam em reclusão, os haréns da China Imperial onde viviam milhares de concubinas reais que eram vigiadas por eunucos, as devadasis que em nome de Deus eram forçadas a uma vida de prostituição religiosa; todas manifestando diferentes aspectos da exploração da mulher no Oriente. É pouco conhecido que havia sociedades na Ásia onde a posição das mulheres era uma favorável, julgando até mesmo pelas normas modernas. A Tailândia e Birmânia também pertenciam a esta categoria. Nestas instâncias também baseamos nossas conclusões principalmente sobre as observações de Europeus que viveram nestes dois países em várias posições sociais nos séculos 19 e 20. R. Grant Brown, que era um oficial de receitas por 28 anos na Birmânia (1889 – 1917), disse:

“Todos aqueles que já escreveram sobre a Birmânia comentaram sobre o impressionante grau de independência alcançado pelas mulheres. Sua posição é mais surpreendente em vista da subjugação e isolamento das esposas e filhas nos países vizinhos da Índia e China...” [2]

Um mensageiro britânico à Corte de Ava ficou pasmo pelo tratamento igualitário dado até mesmo às mulheres reais.

“A rainha sentava com o rei no trono para receber a embaixada. Ambos são chamados de ‘os dois Lordes soberanos’. Não é extraordinário aos birmaneses, pois com eles, geralmente falando, as mulheres são mais aproximadamente iguais ao sexo mais forte do que em qualquer outro povo Oriental de consideração.” [3]

O Tenente General Albert Fytche, Comissário Chefe da Birmânia Britânica e Agente ao Vice-rei e Governador General da Índia, escreveu em 1878, “Ao contrário dos desconfiados e suspeitos Hindus e Maometanos, a mulher tem entre eles uma posição de perfeita liberdade e independência. Ela é, com eles, não a mera escrava das paixões, mas possuidora de direitos e é reconhecida e devidamente honrada como a ajudante do homem, e de fato tem um destaque maior nas transações dos assuntos mais corriqueiros da vida do que no caso de talvez qualquer outro povo, seja oriental ou ocidental.” [4]

Novas investigações têm revelado que na Tailândia também, embora não na mesma extensão, as mulheres desfrutavam de uma considerável liberdade. Por exemplo, J. G. D. Campbell, [5] Conselheiro Educacional para o Governo do Sião (antigo nome para a Tailândia) escreveu em 1902:

“No Sião de qualquer maneira, seja lá quais forem as causas, a posição das mulheres ao todo é uma saudável, e contrasta-se favoravelmente em relação a outros povos Orientais. Ninguém pode passar muitos dias em Bangkok sem ter ficado surpreso com o físico robusto e postura ereta da mulher comum...Pode ser dito do Budismo que sua influência neste caso foi pelo  menos bem positiva; e quando nos lembramos dos mil argumentos que já foram usados em nome tanto da religião quanto moralidade para denegrir e desmoralizar o sexo mais frágil, isso realmente diz muito para seu crédito.”

Sir Charles Bell, um Representante Político Britânico no Tibete e Siquim, escreve em 1928, “Quando um viajante entra no Tibete vindo das nações vizinhas da Índia e China, poucas coisas o impressionam mais vigorosamente ou profundamente do que a posição das mulheres tibetanas. Elas não são mantidas em isolamento assim como são as mulheres indianas. Acostumadas a se misturarem com membros do outro sexo durante suas vidas, elas ficam a vontade com homens e conseguem segurar os seus (homens) tão bem quanto quaisquer outras mulheres do mundo”. Bell continua, “E o sólido fato permanece que em países Budistas as mulheres mantêm uma posição incrivelmente favorável. A Birmânia, Ceylon e Tibete exibem o mesmo quadro”. [6]

Estes comentários sobre a liberdade e independência desfrutada pelas mulheres em certas sociedades pré-industrializadas e por ora isoladas são surpreendentes. Não é sugerido que em muitos desses países, o Sri Lanca, Birmânia e Tailândia, as mulheres estejam em um patamar igual aos homens ambos em teoria e prática. Mas elas foram favoravelmente comparadas às mulheres dos países vizinhos da Índia e China, onde as doutrinas Hindus, Confucionista e Islâmicas eram prevalentes. Esta afirmação pode parecer contraditória, pois a Birmânia e Tailândia eram síntese de civilizações Índicas e Sínicas. No Sri Lanca também o impacto do Hinduísmo era muito forte. Surge a questão sobre como a situação em relação às mulheres nestas três sociedades deve ser diferente daquelas grandes culturas da Ásia. A característica comum predominando nesses países é que eles são intensamente Budistas. É tentador, portanto, concluir que o Budismo ajudou a melhorar a posição das mulheres no Sri Lanca, Birmânia e Tailândia. 

Esta conclusão deve nos levar de volta à questão da atitude Budista em relação às mulheres e como isso se diferencia das de outras religiões. Examinando a posição da antiga Índia torna-se claro pela evidência encontrada no Rigveda, a literatura mais antiga dos Indo-arianos, de que as mulheres tinham um honrável lugar na remota sociedade Indiana. Havia alguns hinos do Rigveda que foram compostos por mulheres. Mulheres tinham acesso ao maior dos conhecimentos e podiam participar em todas as cerimônias religiosas. Na vida doméstica também, ela era respeitada e não havia sugestão alguma do isolamento da mulher e casamento entre crianças. Após isso, quando os sacerdotes bramânicos dominaram a sociedade e a religião perdeu sua espontaneidade e tornou-se nada mais do que uma massa de rituais, vemos uma tendência decadente na posição ocupada pela mulher. O criador bramânico de leis mais imperdoável era Manu cujo Código de Leis [7] é a literatura mais antifeminista que alguém possa encontrar. No mais extremo Manu privou a mulher de seus direitos religiosos e vida espiritual. “Sudras, escravos e mulheres” eram proibidos de lerem os Vedas. Uma mulher não poderia alcançar o paraíso através de qualquer mérito próprio. Ela não podia adorar ou fazer sacrifício algum por si só. Ela poderia chegar ao paraíso apenas através da implícita obediência ao seu marido, não importa se ele era um devasso ou imoral. Tendo assim privado a mulher de qualquer alimento espiritual ou intelectual, Manu elaborou o mito de que todas as mulheres eram pecaminosas e inclinadas ao mal. “Nem vergonha nem decoro, nem honestidade, nem timidez”, diz Manu, “é a causa da castidade de uma mulher, mas apenas o seu desejo por um pretendente.” [8] Ela, portanto, deveria ser mantida sobre vigilância constante: e o melhor modo de fazer isso era mantê-la ocupada nas tarefas domésticas e naquelas envolvidas em ser uma mãe para que ela não tenha tempo de se envolver em encrencas e aprontar. Apesar dessa difamação sempre houve no pensamento Indiano uma idealização do que seria a maternidade e a glorificação do conceito feminino. Mas na prática, pode ser dito pela maior parte, que o Código de Leis de Manu influenciou as atitudes sociais em relação a mulher, pelo menos nas camadas mais altas da sociedade.

É contra esse plano de fundo que devemos ver o impacto do Budismo no século quinto antes de cristo. Não estamos sugerindo que o Buda inaugurou uma campanha para a libertação das mulheres indianas. Mas ele foi sim bem-sucedido em criar um pequeno desvio contra o dogma e superstição bramânico. Ele condenou a estrutura de casta dominada pelos Brâmanes, ritualismo excessivo e sacrifício. Ele negou a existência de um Deus criador e enfatizou a emancipação por esforço próprio. A doutrina básica do Budismo, isto é, salvação pelo esforço individual, pressupõe a igualdade espiritual de todos os seres, machos e fêmeas. Isso deve atenuar um pouco a supremacia exclusiva do homem. Era preciso um homem de considerável coragem e espírito rebelde para pronunciar um modo de vida que colocava a mulher em um nível de quase igualdade ao homem. O Buda via o potencial espiritual de ambos os homens e mulheres e fundou após uma considerável hesitação a Ordem de Bhikkunis ou Monjas, uma das organizações mais antigas para mulheres. O Sasana ou Igreja consistia de Bhikkus (Monges), Bhikkhunis (Monjas), e seguidores leigos de ambos os sexos, portanto, a mulher não foi excluída de nenhuma esfera da vida religiosa. Os estados espirituais mais elevados estavam ao alcance tanto dos homens quanto das mulheres e a última não precisava de nenhuma assistência masculina ou intermediário sacerdotal para alcançá-los. Podemos assim concordar com I. B. Horner quando ela diz que o Budismo concedia à mulher uma posição de aproximada igualdade. [9]

Afastando-se um pouco da esfera filosófica para a vida doméstica, notamos uma mudança na atitude quando chegamos aos tempos Budistas. Em todas as sociedades patriarcais o desejo por um filho é muito forte para a continuidade da patrilinhagem e, no caso dos Hindus, para a devida realização de rituais funerários. Pois apenas um filho poderia realizar os rituais funerários de seu pai e assim assegurar a felicidade futura do falecido. Isso era tão crucial para os Hindus que a lei permitia que uma esposa destituída de filhos fosse trocada por uma segunda ou terceira ou até mesmo expulsa de casa. [10] É dito que “através de um filho ele conquista o mundo e através do filho de um filho ele atinge a imortalidade.” [11] Como um resultado desta crença o nascimento de uma filha era a causa para lamentação. No Budismo a felicidade futura não depende de rituais funerários, mas das ações do falecido. A cerimônia funerária Budista é muito simples e pode ser realizada pela viúva, filha ou qualquer um no local e a presença de um filho não é compulsória. Não há ritual ou necessidade cerimonial para um filho e o nascimento de uma filha não precisava ser uma causa para tristeza. É bem conhecido que o Buda consolou o Rei Pasenadi que veio até ele chorando por sua rainha, Mallika, ter dado luz a uma filha. “Uma filha, Oh Rei, poderá provar ser mais nobre do que um homem...” [12], uma afirmação revolucionária para sua época. Apesar da igualdade espiritual dos sexos e o fato de que um filho não era uma necessidade absoluta para assegurar a felicidade em uma vida futura, ainda sim até mesmo em sociedades Budistas há uma preferência por um filho até os dias de hoje, tão potente é a ideologia da superioridade masculina.  

Casamento e família são instituições básicas em todas as sociedades, seja primitiva ou moderna e a posição da mulher em uma dada sociedade é influenciada pelo e expresso no status que ela tem dentro destas instituições. Ela tem os mesmos direitos que seu marido para dissolver o laço matrimonial? Ela tem o direito de casar outra vez ou isso é apenas privilégio do homem? As respostas a estas perguntas definitivamente determinarão a posição atribuída à mulher em qualquer sociedade. Examinemos agora a atitude Budista para essa questão. No Budismo, ao contrário do Cristianismo e Hinduísmo, o casamento não é um sacramento. É um evento puramente secular e os monges não participam dele. No Sri Lanca, Tailândia e Birmânia há uma grande quantia de cerimônia, jejum e celebrações ligados ao evento, mas nenhum destes é de caráter religioso.  Algumas vezes monges são convidados para participar e coletarem esmolas de alimento e em troco eles abençoam o casal. Apesar de não haver nenhum voto ou rituais envolvidos no evento do casamento, o Buda delineou no Sigalovada Sutta os deveres de um marido e sua esposa:

“Em cinco modos deve um esposa ser servida como o Oeste pelo seu marido: pelo respeito, pela cortesia, pela fidelidade, por concedê-la autoridade, por provê-la com ornamentos. Nestes cinco modos uma esposa deve servir a seu marido como Oeste: suas tarefas são bem cumpridas pela hospitalidade para com os parentes de ambos, pela fidelidade, por cuidar dos bens que ele trás e sendo habilidosa e industriosa em cuidar de todos os assuntos.” [13]

O ponto significante aqui é que as injunções do Buda são bilaterais; o relacionamento conjugal é recíproco com direitos e obrigações mútuas. Essa foi uma enorme ruptura com as ideias prevalecentes naquela época. Por exemplo, Manu diz, “Prole, a devida realização da felicidade e benção celestial para seus ancestrais e para si mesmo depende inteiramente sobre sua esposa.” [14] Confúcio, um contemporâneo mais ancião do Buda, falava num tom similar: “Neste modo quando a obediência diferencial da esposa estiver completa, a harmonia interna estará segura, e uma longa continuidade da família pode ser esperada.” [15] Confúcio fornece em detalhes os deveres de um filho para com seu pai, da esposa para com seu marido e da nora em relação à sogra, mas nunca vice-versa; de modo que a esposa apenas tem tarefas e obrigações e o marido tem apenas direitos e privilégios. De acordo com as injunções do Buda apresentadas no Sigalovada Sutta, que lida com tarefas domésticas, toda relação era recíproca seja ela entre marido e mulher, pais e filhos, mestre e servo. Idealmente, portanto, entre Budistas, casamento era um contrato entre iguais.

Contudo, não é o caso que necessariamente a prática social segue a teoria. Os ideais igualitários do Budismo parecem ter sido impotentes contra a ideologia universal da superioridade masculina. A doutrina do Kamma e Renascimento, um dos princípios fundamentais do Budismo, foi interpretada como prova da superioridade intrínseca do homem. De acordo com a lei do Kamma, as ações feitas no passado determinarão a posição de riqueza, poder, talento e até mesmo o sexo em nascimentos futuros. Um indivíduo então renasceria como mulher por causa de Kamma negativo. Portanto, a subordinação da mulher foi tida como religiosamente sancionada. Não é incomum que até mesmo no Sri Lanca para as mulheres, após terem feito alguma ação meritória, aspirarem à redenção do status feminino e renascerem como homens no futuro. Apesar do excepcionável grau de igualdade sexual na sociedade birmanesa, todas as mulheres recitam o seguinte pedido como parte de suas devoções Budistas: “Eu rogo que eu possa renascer como um homem numa existência futura.” [16] Na Tailândia em 1399 a.C., a Rainha Mãe fundou um mosteiro e comemorou o evento com uma inscrição no qual ela pedia, “Pelo poder do meu mérito, que eu renasça como um homem..” [17] Alguns exemplos podem ser citados da linguagem popular de todas as três sociedades para indicar que até mesmo as mulheres, seja lá quais suas classes, aceitaram a ideia da inferioridade feminina e isso tem influenciado o relacionamento marido-mulher em vários graus nas sociedades em questão. No Sri Lanca onde esta ideia é menos perceptível, tem-se mantido até mesmo nos tempos modernos a fachada da dominação do marido. O controle da esposa é discreto e sutil. Esta atitude ambivalente é mais destacada na Birmânia onde as mulheres são uma porção especialmente privilegiada. Elas controlam a economia da família; socialmente, politicamente e legalmente elas estão no meso nível que o homem. Mas a mulher faz um show de deferência ao seu marido que em si não é sinal de dominação masculina, mas uma adaptação à norma cultural. Por outro lado, o fato do homem poder ter várias esposas enquanto que a mulher era restrita a apenas um, colocava o marido numa posição privilegiada. O oposto era verdadeiro no Sri Lanca onde poligamia era desconhecida exceto na família real, a poliandria era praticada (mas não era muito difundida) até tempos recentes. Na Tailândia tradicional a subordinação da esposa na hierarquia familiar era sancionada por lei. Até 1935 a poliginia era legalmente reconhecida.

“Fundamental para a lei familiar no Código de Leis de 1805 era o poder conjugal do marido, o que significava que era ele quem gerenciava a propriedade pertencente a ambos os cônjuges, que ele podia vender sua esposa, ou dá-la a outrem e que ele podia administrar punição corporal nela, provendo que o grau de punição fosse de acordo com o delito cometido.” [18]

De acordo com a natureza do contrato matrimonial passamos a questão sobre se ambos partidos tinham a mesma facilidade em terminar o mesmo. É visto que na maioria das culturas a mulher é irremediavelmente presa por correntes de matrimônio enquanto que o homem pode se livrar de seus grilhões com muita facilidade. O Código Confucionista de disciplina provê o marido com algumas bases para o divórcio. Não apenas lepra e esterilidade, mas também desobediência e tagarelice eram tidas como motivos válidos para se livrar de uma esposa. Entre os Hindus casamento era um sacramento indissolúvel para a mulher, enquanto que o homem tinha o direito de casar-se outra vez até mesmo quando sua primeira esposa ainda estivesse viva. Manu diz, “Uma esposa estéril pode ser substituída no oitavo ano. Aquela cujas crianças morrem, no décimo; aquela que apenas dá luz a filhas, no décimo primeiro, mas aquela que é briguenta pode ser trocada sem demora alguma.” [19] Em acréscimo, um homem poderia abandonar uma esposa enferma, com cicatrizes, machas ou deformações, ou que não fosse mais virgem. [20] Sobre a Lei Islâmica o contrato poderia ser dissolvido pelo marido a qualquer momento sem a intervenção de uma corte e sem assinalar causa alguma. Mas a esposa não podia divorciar por si própria de seu marido sem o seu consentimento exceto sobre os termos de um contrato feito antes ou depois do casamento. Se as condições do contrato não se opusessem a lei Muçulmana então o divórcio poderia ser efetuado. [21]

No Budismo o casamento não recebia nenhuma sanção religiosa e na ausência de um código Budista legal comparável às Leis de Manu ou a Lei Sharia dos Muçulmanos, a dissolução do contrato matrimonial era resolvido pelos indivíduos envolvidos ou suas famílias. Em relação ao Sri Lanca, há um documento datado 1769 que fornece uma visão ortodoxa e oficial sobre o tema. Os Holandeses que estavam governando as províncias marítimas do Sri Lanca desejavam codificar as leis e costumes da ilha. O Governador Holandês I. W. Falck enviou uma série de perguntas aos eminentes monges de Kandy e as respostas a estas foram dadas no documento conhecido como Lakrajalisirita. O governador levantou a questão sobre se o divórcio era permitido entre os cingaleses. A resposta foi,

“Um homem ou mulher que estiverem unidos em matrimônio com o conhecimento de seus pais e relações e de acordo com o costume Cingalês não podem se separar a seu bel-prazer. Se um homem desejar obter um divórcio, deve ser provado que sua esposa, falhando na reverência e respeito que é devido ao marido, ter se dirigido a ele em uma maneira imprópria; ou se ela levou suas afeições para outrem e gasta o dinheiro de seu marido com este, e se sua conduta imprópria for confirmada perante uma corte de justiça, ele será permitido abandoná-la.”

A próxima pergunta é sobre quais erros da parte do marido poderia uma mulher processá-lo e obter um divórcio. Os Bhikkhus responderam, 

“Se for destituída de amor e afeição por sua esposa, se ele a impede o uso de ornamentos e enfeites próprios de sua classe; se ele não a provê com alimentos de tal qualidade a qual ela tem direito; se ele for negligente em adquirir dinheiro pela agricultura, comércio e outros meios honrosos; se for pego associando com outras mulheres, ele gasta sua propriedade com elas; se ele comete a prática de ações impróprias e degradantes como roubo, mentir ou ingerir bebidas alcoólicas, se ele trata sua esposa como uma escrava e ao mesmo tempo trata as outras mulheres de forma melhor, sobre as provas de sua delinquência perante a corte acima mencionada, a esposa pode obter um divórcio.” [22]

O ponto significante é que mesmo na teoria as leis cingaleses eram igualmente aplicáveis e válidas tanto para o marido como para a mulher. Vemos claramente a influência das injunções do Sigalovada Sutta nos desenvolvimentos dessas instituições.

Contudo, o litígio sendo um tedioso processo tanto antes quanto agora, era improvável que o cingalês do dia-a-dia no século 19 recorresse a este longo processo jurídico.

O Lakrajalosirita foi escrito por monges Budistas para a informação de um estrangeiro, e julgando o restante do documento eles tentaram demonstrar condições ideias. Apenas aqueles mais afortunados poderiam conseguir pagar pelo luxo de um caso de corte. Um relato mais realista foi deixado para nós por Robert Knox que passou 19 anos na companhia de pobres camponeses.

“Mas seus casamentos são de pouca força e validade, pois se eles discordarem ou deixarem de gostar um do outro, eles partem sem vergonha alguma. Mesmo assim, ainda é mais fácil para o homem do que para a mulher: todavia, eles deixam um ao outro a seu bel-prazer.” [23]

De acordo com as leis cingalesas do século 18 a esposa era tratada muito liberalmente na época do divórcio. Ela conseguia recuperar a fortuna que seus pais deram a ela no momento do casamento e metade da propriedade adquirida pelo casal após o casamento. Ela também era concedida uma quantia suficiente de dinheiro para cobrir seus gastos pelos próximos seis meses seguindo o divórcio. É digno notar que no Sri Lanca antes da ocupação Europeia ambos os sexos tinham facilidades iguais para se divorciarem, ambos em teoria e prática. A situação mudou, contudo, com o impacto da Cristandade e a introdução da Lei Romana Holandesa pelos Holandeses nas áreas sobre seus domínios. 

Na Birmânia tradicional também o código do divórcio fornecia orientações para uniões mal resolvidas. Onde houvesse desejo mútuo pela separação devido à incompatibilidade ou outras causas, os partidos poderiam divorciar entre si por uma divisão igual da propriedade. Se um não desejasse a separação, o outro estava livre para ir contanto que a propriedade fosse deixada para trás. Uma mulher poderia se divorciar se seu marido a maltratasse ou se ele não conseguisse mais sustentá-la; e um homem poderia fazer o mesmo no caso da esterilidade ou infidelidade da esposa. Outro método, não incomum, era para o partido ofendido procurar refúgio na vida monástica; pois isso dissolveria de uma vez por todas o laço matrimonial. A facilidade para adquirir o divórcio na Birmânia foi condenada pelo Pai Bigandet, um o Bispo Católico de Rangoon como “lassidão condenável”. Apesar dessa censura, é dito que esta facilidade igualitária para o divórcio prestou aos cônjuges birmaneses um caráter mais tolerável e que graves brigas conjugais eram raras entre eles. [24]

Na Tailândia apesar das mulheres terem desabilidades legais, elas podiam dar início aos procedimentos para um divórcio que as capacitavam de escapar de um marido tirânico. Já em 1687 os mensageiros franceses para a corte cingalesa observavam,

“O Marido é naturalmente o Mestre do Divórcio, mas ele nunca recusa esse direito a sua esposa quando ela absolutamente o deseja. Ele restaura sua porção e suas crianças são dividas entre eles nesta maneira...” [25]

Apesar do poder conjugal do marido ser fundamental para o Código de 1805, ainda sim o direito da esposa de se divorciar era preservado e ela era tratada generosamente quando o casamento era anulado.

Indo para a questão de um segundo casamento para viúvas e divorciadas, notamos que em certas sociedades as esposas eram consideradas como propriedades pessoais de seus maridos. Deste modo o costume de degolar, sacrificar ou enterrar as mulheres vivas para acompanharem seus maridos falecidos juntamente com seus outros pertences foi constatado em muitas terras tão remotas quanto a America, África e Índia. O melhor exemplo disto é o soti puja ou autoimolação das viúvas Hindus de altas castas. Este costume era desconhecido no Rigveda e foi desenvolvido posteriormente: nunca foi muito difundido, mas houve instâncias isoladas continuando até mesmo nos primeiros tempos da dominação Britânica. Os Britânicos tiveram que introduzir uma legislação para prevenir isso. Entre os Hindus era esperado de uma viúva conduzir uma vida de severa austeridade e celibato estrito, pois ela estava ligada a seu falecido marido. Ainda mais, ela perdia seu status social e religioso e era considerada uma pessoa de má sorte. A questão de um segundo casamento por divorciadas não surgiu entre os Hindus porque uma mulher não podia repudiar seu marido; mesmo se ela fosse rejeitada por este ela deveria permanecer em celibato.

No Budismo a morte é considerada um fim natural e inevitável. Como resultado disso a mulher não sofre degradação alguma devido seu status de viúva. Seu status social não é alterado de qualquer forma. Em sociedades Budistas ela não tem que divulgar sua viuvez raspando sua cabeça ou abandonando seus ornamentos. Ela não é forçada a jejuar em dias específicos e a prática de dormir em chãos duros para automortificação não encontra lugar algum no Budismo. Nem ela tem que se ausentar de cerimônias e eventos auspiciosos. Acima de tudo, não há barreira religiosa alguma que a impeça de se casar novamente. [26] O recasamento de esposas rejeitadas é também conhecido entre a literatura Budista. Mulheres cujos casamentos se romperam eram livres para se casarem novamente sem nenhum estigma associado a elas... “Mas se por acaso eles deixarem de gostar um do outro e partirem…então ela está apta para outro homem...” [27] Mesmo o Lakrajalosirita, que fornece um ponto de vista Budista ortodoxo, permite um segundo casamento para mulheres depois da separação. Isso era comum até mesmo nas altas camadas da sociedade. Na Birmânia e Tailândia também a mulher tinha o direito de se casar novamente após o divórcio. Já em 1687 La Loubere, o mensageiro francês notou que na Tailândia, “Após o divórcio ambos podiam se casar outra vez e a mulher poderia se casar novamente até mesmo no dia do Divórcio.” [28]

Fica claro, portnato, que o Budism salvou a filha da indignidade, elevou a esposa a uma posição de quase igualitária a de seu marido e resgatou a viúva da miséria abjeta.

A liberdade social que a mulher desfrutou em sociedades Budistas, acima de tudo, tem evocado da observação de Ocidentais os comentários que citamos anteriormente neste artigo. Não trata-se tanto da igualdade do status mas a completa desegregação dos sexos, que tem distinguido a mulher em sociedades Budistas daquelas de sociedades do Oriente Médio, o Extremo Oriente e o subcontinente Indiano. A segregação dos sexos apenas conduz a reclusão e confinamento da mulher por trás de véus e paredes. A Código Confucionista determina regras detalhadas sobre como homens e mulheres devem se comportar na presença de cada um. Manu foi ainda mais longe ao extremo da segregação por alertar que um homem não deve ficar em um lugar sozinho nem mesmo com sua mãe ou irmã. A segregação sexual prevalecia todos os aspectos da vida na sociedade Islâmica.

Na literatura Budista mais antiga vemos uma livre mistura entre os sexos. Os monges e monjas celibatos tinham aposentos separados, ainda sim o mosteiro não era cortado do resto do mundo. É registrado que o Buda tinha longas conversas com suas discípulas. A devota benfeitora Visakha frequentava o mosteiro decorada com todas as suas joias, e acompanhada de uma serva ela prestava serviços às necessidades dos monges. Suas roupas e ornamentos eram o motivo de fofocas na cidade, e mesmo assim nem o Buda nem os monges quiseram dissuadi-la de usa-los. Foi apenas após ela ter desenvolvido  insight e asceticismo que ela voluntariamente abandonou seus ornamentos. 

Esta livre e liberal atitude certamente teve seu impacto sobre o comportamento tanto de homens quanto de mulheres em sociedades Budistas. No Sri Lanca no século 17, “Os Homens não são ciumentos de suas Esposas pois as maiores Mulheres da terra irão frequentemente conversar e prosear com qualquer Homem que elas queiram, apesar de seus Maridos estarem presentes.” [29] Foi notado que as mulheres visitavam locais de adoração sempre vestidas em seus melhores trajes. Isso é um grande contraste em relação a atitude de Manu, do qual de acordo com ele o amor pela ornamentação era um mal atributo feminino; e a injunção Corânica que a pia mulher deveria esconder toda sua beleza e ornamentação por trás de seus véus. As mulheres birmanesas de todas as classes iam sem véu e ornadas e acrescentavam cores a todas as ocasiões, embora ladeado pela Índia e China, onde tais costumes como o cortinado e amarração dos pés prevaleciam. Na Tailândia foi notado que as mulheres de alta classe, embora por meios alguns confinadas a estrita reclusão, não apareciam muito em público.  

Em conclusão podemos dizer que a natureza secular do contrato matrimonial, a facilidade para obter-se o divórcio, o direito de casar-se novamente, a desegregação dos sexos e acima de tudo o direto de herdar, possuir e descartar propriedade sem a permissão ou empecilho pela parte do marido, tudo isso contribuiu para o alívio do lote da mulher em sociedades Budistas. Conflitando com o etos Budista e negando seus efeitos em vários graus é a ideologia universal da superioridade masculina. Portanto em todas as três sociedades – Sri Lanca, Tailândia e Birmânia – há uma ambivalência na atitude em relação à mulher. Ainda sim sua posição é certamente melhor do que quaisquer outras culturas da Ásia.

Referências

1.      Os Diversos Trabalhos de Hugh Boyd, com um relato de sua Vida e Escritos por L.D Campbell (Londres 1800), 54-56, Boyd foi enviado em 1782 como um mensageiro para a corte Kandyana pelo Governador Britânico em Madras.
2.      R. Grant Brown, Birmânia Conforme eu a Vi 1889-1917 (Londres 1926). Grent, que era um membro do Serviço Civil Indiano, era um magistrado e oficial de receitas na Birmânia por 28 anos.
3.      Jornal de uma Embaixada do Governador General da Índia para a Corte de Ava por John Crawfurd, 2ª edição em 2 vols. (Londres 1824), I, 243.
4.      Birmânia - Passado e Presente, Tenente General Albert Fytche, 2 vols. Vol. II Londres 1878.
5.      Sião no Século Vinte, Sendo as Experiências e Impressões de um Oficial Britânico, por J. G. D. Campbell (Londres 1902), 112-113. Campbell era Inspetor de Escolas e posteriormente Conselheiro Educacional para o Governo Siamês.
6.      Pessoas do Tibete, Charles Bell, Oxford 1928, p. 147.
7.      Leis de Manu, trad. G. Buhler, Livros Sagrados do Oriente, Vol. XXV (Oxford 1866).
8.      Ibid., IX, 10.
9.      I. B. Horner, Mulheres sob o Budismo Primitivo: Mulheres Leigas e Monjas (Londres 1930), XXIV.
10.  Leis de Manu, IX, 81.
11.  Ibid., IX, 137.
12.  Citado por I.B Horner em Mulher na Antiga Literatura Budista, The Wheel Publication, No. 30 (Colombo 1961), 8-9.
13.  Diálogos do Buda, trad. C. A. F. Rhys Davids, parte III, 181-182.
14.  Leis de Manu, IX, 28.
15.  Os Livros Sagrados da China: Os Textos do Confucionismo, trad. James Legge (Oxford 1879) Livros Sagrados do Oriente, Vol. XXVIII. 431.
16.  Citado por Melford E. Sprio em, Parentesco e Casamento na Birmânia: Uma Análise Psicodinâmica e Cultural (Londres 1977), 260.
17.  Citado por C. J. Reynolds em “Uma Defesa Tailandesa Budista do Século 19 a Respeito da Poligamia e alguns Comentários sobre a História Social da Mulher na Tailândia”, um Ensaio preparado pela Sétima Conferência Internacional de Historiadores da Ásia, Bangkok, 22-26, Agosto 1977, 3.
18.  Ibid., 6-7.
19.  Leis de Manu, IX, 81.
20.  Leis de Manu, IX, 72.
21.  D. F. Mulla, Princípios da Lei Maometana (Calcutta 1955). 264.
22.  Lakrajalosirita, ed. e trad. Bispo Edmund Pieris, Publicado pela Ceylton Historical Manuscripts Commission, 10 e 11.
23.   Robert Knox, Uma Relação Histórica de Ceylon (Glasgow 1911). Knox era um marinheiro Britânico naufragado que passou 19 anos entre 1660 e 1679 como prisioneiro no Reino Kandiano. 
24.  Fytche, Vol. II, 75.
25.  Simon de la Loubre, O Reino do Sião, Com uma Introdução por David K. Wyatt (Londres 1968) 53. De la Loubre era um mensageiro enviando ao Sião por Luís XIV da França em 1687. Ele esteve no Sião por quatro meses apenas.
26.  I. B. Horner, Mulheres Sob o Budismo Primitivo, 72 sqq.
27.  Knox, 149.
28.  De la Loubere, 53.
29.  Knox, 104. 

O seguinte artigo pode ser encontrado originalmente em inglês no seguinte endereço: http://www.accesstoinsight.org/lib/authors/dewaraja/wheel280.html

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