O Que é Vipassanā?
Por
Cynthia
Thatcher
Tradução
Davi Coêlho
"Então, Bahiya, você deve treinar assim: Com relação ao que é visto, haverá apenas o visto. Com relação ao que é ouvido, haverá apenas o ouvido. Com relação ao que é sentido, haverá apenas o sentido. Com relação ao que é cognizado, haverá apenas o cognizado. Assim é como você deve treinar. Quando com relação ao que é visto houver apenas o visto, ao que é ouvido houver apenas o ouvido, ao que é sentido houver apenas o sentido, ao que é cognizado houver apenas o cognizado, então, Bahiya, você não estará 'com aquilo.' Quando você não estiver 'com aquilo,' então você não estará 'naquilo.' Quando você não estiver 'naquilo,' então você não estará aqui, nem ali e tampouco entre os dois. Isso em si mesmo é o fim do sofrimento.”
Ouvindo essa breve explicação do Dhamma do Abençoado, a mente de Bahiya exatamente naquele momento se libertou das impurezas através do desapego. Tendo exortado Bahiya com essa breve explicação do Dhamma, o Abençoado partiu."
- Udana 1. 10
O que é Meditação Vipassanā?
Vipassanā é a expressão máxima do ditado de Sócrates, “conheça a si mesmo”. O Buda descobriu que a causa do sofrimento pode ser removida quando enxergamos nossa verdadeira natureza. Isso é um insight radical. Significa que nossa felicidade não depende de manipular o mundo externo. Apenas temos que nos ver de forma clara – uma proposta muito mais fácil (mas no fim das contas, conhecer a si mesmo com clareza revela-nos que não há uma entidade permanente, assim como o Buda ensinou).
Meditação vipassanā é um método racional para purificar a mente de fatores mentais que causam aflição e dor. Esta técnica simples não invoca a ajuda de um deus, espírito ou qualquer outro poder externo, mas depende somente de nosso próprio esforço.
Vipassana é um insight que corta a percepção convencional para poder enxergar a mente e matéria tal como elas realmente são: impermanente, insatisfatória e impessoal. A meditação vipassanā gradualmente purifica a mente, eliminando toda forma de apego. Conforme o apego vai sendo cortado, desejo e ilusão gradualmente se dissolvem. O Buda identificou estes dois fatores – desejo e ignorância – como sendo a raiz do sofrimento. Quando estes são removidos, a mente toca algo permanente e além do mundo transitório. Este “algo” é a felicidade supramundana e imortal chamada “Nibbāna” em Pali.
A meditação vipassanā está interessada no momento presente – em permanecer no aqui e agora no maior grau possível. Consiste em observar o corpo (rūpa) e mente (nāma) com atenção ‘nua e crua’.
A palavra vipassanā tem duas partes. “Passanā” que significa ver, ou seja, enxergar. O prefixo “vi” tem significados diferentes, um deles é “através”. O insight de vipassanā literalmente corta através do véu da ilusão que está na mente. “Vi” também pode significar o prefixo “dis,” sugerindo discernimento – um tipo de visão que vê componentes individuais separadamente. A ideia de separação é relevante aqui, porque o insight funciona como um bisturi mental, diferenciando a realidade convencional da realidade final. Por último, “vi” também pode funcionar como um intensivo, neste caso “vipassanā” significaria uma visão intensa, profunda e poderosa. É um insight imediato experimentado diante de nossos olhos, não tendo nada haver com o raciocínio ou pensamento.
A meditação vipassanā é uma religião?
Não. Apesar de ter sido descoberta pelo Buda, a meditação vipassanā não é Budismo. É o método pelo qual o Buda e seus discípulos se libertaram de toda forma de sofrimento e atingiram a iluminação. Esta técnica simples é um método democrático, aberto para qualquer fé ou aqueles que não aderem a nenhuma religião.
A meditação vipassanā é uma forma de escapismo?
Não. Muito pelo contrário, é a confrontação final com a realidade.
Dois Tipos de Meditação: Atenção Plena e Tranquilidade
O termo completo para a meditação vipassanā é “vipassanā-bhāvana”. “Bhāvana” (que significa cultivo, desenvolvimento) é um sistema de treinamento mental que cultiva sabedoria ou concentração.
Todas as técnicas de meditação podem ser classificadas em dois tipos: meditação vipassanā (vipassanā-bhāvana) e meditação de tranquilidade, ou concentração (samatha-bhāvana). Na prática da tranquilidade a atenção é fixada em um único objeto até que a mente entre em um profundo estado de quietude. Concentração suficiente é desenvolvida para aquietar a mente e reprimir as impurezas mentais como a raiva, por exemplo. Quando acaba a meditação, porém, essas impurezas voltam eventualmente.
A prática do insight, por outro lado, cultiva sabedoria. O estudante desenvolve atenção plena sistemática para poder ver as reais características da existência: insatisfação, impermanência e impessoalidade. Todas as atividades da vida diária podem ser objetos de atenção plena: ações corporais, pensamentos e emoções – até mesmo as mais dolorosas. Nada é reprimido.
Na prática da atenção plena, o meditador nota e se desprende de diferentes objetos conforme eles surgem e desaparecem, ao invés de manter a mente fixada em uma coisa exclusivamente. Apesar de que alguma concentração é precisa para a prática do insight, é apenas o nível chamado “concentração momentânea”, que é mais fraco do que o tipo de concentração precisa para profundos estados de tranquilidades (jhāna).
O caminho da concentração resulta em calma momentânea, benção e quando totalmente aperfeiçoado, poderes psíquicos. O caminho do insight, por outro lado, leva a sabedoria e liberdade permanente do sofrimento. Esta liberdade é chamada de “Nibbāna”, o imortal.
Praticamos meditação vipassanā para podermos ver a mente, para conhecê-la ao invés de controlá-la, assim como Bhikkhu Sopako diz. Ver sua própria mente é ver a realidade final.
Muitos acham desculpas para evitar cultivar a mente. Há a desculpa mais comum, “Eu não tenho concentração o suficiente para meditar.” Mas uma sólida concentração, como dissemos, não é um requerimento para meditação vipassanā.
Pergunte a si mesmo: uma pessoa enferma precisa de alguma habilidade especial para tomar penicilina? Não, esta toma porque está doente. Assim como um remédio, meditação não é algo para qual precisamos de uma habilidade especial, é uma prescrição para uma doença; e quanto pior for o seu sabor, mais provável é que estejamos necessitados dela. O Buda disse que todos sofremos da enfermidade mental do desejo, aversão e ilusão. Mas qualquer um – repito, qualquer um – pode atingir a saúde mental e felicidade “tomando” vipassanā.
O Que é Atenção Plena?
A prática do insight cultiva atenção plena. Atenção plena em meditação vipassanā refere-se à atenção “nua e crua” dos fenômenos físicos e mentais ocorrendo no momento presente. Estes fenômenos incluem movimentos do seu corpo, visões, sons, cheiros, sabores e sensações táteis, sensações dolorosas ou prazerosas, pensamentos, etc.
O momento presente remete ao instante inicial em que um fenômeno (chamado de um “objeto”) tal como um som, uma visão, ou um movimento corporal faz contato com a consciência. Pense em um fósforo raspando contra o lado de uma caixa de fósforos, resultando em uma chama. Isto é o que o contato do momento presente se parece. A mente é uma coisa, o objeto é outra. Quando eles entram em contato juntos, um momento de experiência acontece: um momento de audição, visão, cheiro, movimento, toque, degustação, sentir, ou pensar.
Atenção plena é o fator mental ciente deste contato de um momento para o outro. Além disso, atenção plena reconhece o começo e fim de cada instância do contato. Quer dizer, ela vê cada visão ou som surgir e imediatamente desaparecer.
Com a atenção plena você não julga ou reage ao fenômeno efêmero, mas simplesmente nota-o imparcialmente, sem atração ou repulsa. Devemos enfatizar que atenção plena do corpo, pensamentos, emoções, impressões sensoriais, e assim por diante, não significa pensar sobre estas coisas, mas simplesmente reconhecê-las com atenção nua e crua assim que elas surgirem (isto é, no momento do contato), e então deixá-las e passar para o próximo objeto. A técnica de simplesmente reconhecer e se desprender de sensações sem reagir a elas eventualmente purifica a mente de todas as características nocivas.
O País do Agora
Estar com atenção plena no momento presente é estar no agora, estar aguçadamente ciente do que está acontecendo no corpo e mente no instante presente. Em tais momentos não há a lembrança de eventos passados ou a antecipação do futuro. Em termos simples, a última respiração que acabou de ocorrer também está no passado. Já se foi. A próxima respiração ainda não aconteceu. Apenas a respiração presente (ou visão, som, movimento, etc.) é que é real.
Mas como podemos sobreviver no mundo enquanto permanecendo no presente a tal grau? Para podermos ser funcionais na vida corriqueira, é claro, precisamos planejar e recordar. Temos que avaliar visões e sons. A maior parte do tempo temos que usar linguagem e pensamento abstrato. Neste caso não é possível permanecer precisamente no momento presente, apesar de que podemos usar atenção plena geral e compreensão clara para estarmos mais cientes de nossas atividades e pensamentos.
Mas podemos tirar uma hora ou mais de nosso dia para cultivar atenção plena. Durante este tempo podemos nos desprender de conceitos, pensamentos e ‘fabricações’ mentais de todo tipo. Não importa se for uma hora toda manhã ou um retiro de um ano, durante este período não há necessidade de pensar sobre a crise de ontem ou fazer acrobacias mentais para o futuro, nem mesmo pensar na próxima respiração.
O que às vezes é mal-entendido, porém, é o grau de “agoridade” (estar no agora) que é preciso durante a prática do insight. É mais extremo e preciso do que a maioria das pessoas pensam. E é bem diferente do tipo de estado mental ou atenção que temos durante nossa vida diária.
Pessoas diferentes podem querer dizer coisas diferentes com os termos “agora” e “o presente”. De uma forma prática, podemos pensar em “agoridade” em termos de graus. Imagine que você está de pé sobre um alto precipício olhando para uma floresta abaixo através de um binóculo. Conforme você aproxima o zoom, detalhes de árvores individuais começam a surgir mais nitidamente. Conforme você afasta o zoom, as árvores começam a aparecer menos distintas.
Estamos usando a distância aqui como uma metáfora para o tempo. Para aqueles que estão longe da floresta, viver no presente pode significar desfrutar da vida a cada dia (uma forma de carpe diem) sem planejar o amanhã. Para uma pessoa que aproxima o zoom, permanecer no presente pode significar prestar atenção enquanto lava os pratos – mantendo a mente na tarefa adiante ao invés de ficar divagando para o que aconteceu na manhã anterior.
Mas é só até ai que nosso zoom pode aproximar? É isso que significa permanecer no presente ao último grau? De fato, não é. Podemos acreditar que é o limite apenas porque ainda não cultivamos sistematicamente atenção plena. Mas com forte atenção plena podemos nos aproximar ainda mais. Então descobrimos que o “agora” se abre em muitos níveis a mais.
Gradualmente, é percebido que nossa falta prévia de atenção distorcia nossa percepção da paisagem interna e externa. Conforme atenção plena for ficando mais afiada, poderemos perceber muitos outros detalhes, sutilezas que nunca haviam sido notadas antes, até que seremos capazes de enxergar claramente o momento em que a mente faz contato inicial com um objeto.
Se fizermos isto sistematicamente começaremos a perceber as coisas de forma diferente – como a imagem do espelho que vemos que não é o que pensávamos. O que acreditávamos ser permanente, vemos que é momentâneo. O que pensávamos ser desejável já não parece tão atrativo. O que pensávamos ser a fonte do “eu” ou de nossa identidade é visto claramente como sendo componentes impessoais. Isto serve para atravessarmos a margem da verdade convencional para o outro lado da realidade suprema e ver as coisas tal qual elas verdadeiramente são. É por enxergar estas características claramente que seremos capazes de abandonar o apego e nos tornarmos livres do sofrimento.
Libertando-se de Memórias e Nomes
O que acontece na prática do agora no próximo nível para que possamos ver a realidade suprema claramente? A resposta é: desprender-se do conhecimento convencional temporariamente, que inclui desprender-se da memória. Não apenas memórias de infância, ou de ontem, ou de um minuto atrás, mas também da nossa última exalação um segundo atrás.
Para podermos ganhar conhecimento supremo temos que abrir mão, por um tempo, de rótulos e conceitos do conhecimento convencional. Alguns chamam isso de “mente do principiante”. Isto significa que para atingir um alto nível de insight, deve-se temporariamente abandonar o nome das coisas, porque nomear é basicamente uma forma muito sutil de se lembrar, um pequeno reflexo do passado. Mas não é preciso se preocupar, pois nada será perdido – as memórias e nomes irão retornar uma vez que você precise deles ou então assim que parar o período intenso da prática.
O que significa “desprender-se de nomes?” Para podermos compreender isso, vamos considerar a percepção conforme descrita na filosofia Budista. Um processo perceptivo tem duas partes. Digamos que você está olhando para um piano. Primeiramente é visto uma forma não identificada colorida (este é o momento inicial de contato com o objeto, da qual mencionamos previamente). Uma fração de segundo depois a mente reconhece o nome do objeto, “piano”. Estes dois momentos ocorrem um após o outro, tão rapidamente que na vida diária eles são indistinguíveis. Mas com forte atenção plena e insight é possível ver o momento inicial em que a visão nua e crua acontece antes da memória surgir com o nome.
O mesmo estágio de percepção ocorre sempre que um som, odor, sabor ou toque é percebido. Pura onda-sonora é reconhecida primeiramente; no próximo momento é reconhecido o som. Uma fragrância é sentida antes que seu nome. O mesmo ocorre para toques, sabores e fenômenos mentais.
A verdade é que, apesar de termos atenção plena mínima durante o dia, sempre que reconhecemos uma visão, som, etc., não pode ser dito que você está exatamente no momento presente, ao grau mais alto possível. “Se pudéssemos focar precisamente no momento presente,” Achan Sobin diz, “o olho não identificaria objetos vindo na área da percepção. Som, que meramente tem a função de entrar no tímpano e causar sua vibração, não seria reconhecido como fala ou música, etc. De fato, é possível fixar no segundo fracionário entre ouvir um som e reconhecê-lo na maneira convencional.” (Do livro, Wayfaring: A Manual for Insight Meditation).
Apesar de parecer ser impossível estar claramente cônscio de uma forma antes de reconhecê-la, este evento acontece naturalmente durante a prática de vipassanā quando a atenção plena e insight estiverem consolidados. Com a experiência na meditação, você não terá que crer ou descrer, porque saberá de primeira mão. Tomar conhecimento de um fenômeno com atenção plena antes que ele seja coberto com conceitos é ter a experiência da realidade tal qual ela é em seu estado primitivo.
Isso não significa que na vida diária você irá andar esbarrando em objetos que você não mais reconhece. Novamente, a percepção convencional, juntamente com seus nomes e conceitos necessários para vida diária, estarão lá assim que forem precisos. Poderão ser acessados a qualquer momento.
Mas ao que diz respeito à memória, alguns podem dizer, “Mas eu prezo pelas minhas memórias felizes. Porque eu devo me desprender delas?” De novo, suas memórias não serão permanentemente apagadas. Você será capaz de lembrá-las sempre que quiser. Mas quanto mais você treinar a mente para ficar no presente, mais você verá que se apegar a memórias e viver no futuro na verdade causam sofrimento. Apego a memórias agradáveis faz com que passamos um bom tempo desejando com anseio por algo que já se foi, e este anseio é em si doloroso. O que desaparece na prática de vipassanā não são as memórias em si, mas a aflição que vem por se apegar a elas.
Realidade Convencional vs. Realidade Suprema
O Buda fez uma distinção entre realidade convencional e a realidade suprema. A primeira refere-se aos nomes e conceitos através dos quais interpretamos nossa experiência. A verdade convencional é relativa e conceitual. Ela muda de pessoa para pessoa. Mas a verdade suprema é a mesma para todos. É verdadeira em seu sentido mais absoluto.
Um nome é um conceito; em última instância, não é real. É apenas uma convenção que impomos a algo. Recordar do nome de algo, não importa se estamos nos referindo a uma visão, som, cheiro, sabor, toque, sensação ou alguma outra forma, não é o mesmo que ter a experiência deste diretamente.
A realidade suprema refere-se à data sensorial bruta de momento a momento: as instancias reais da cor, ondas sonoras, sensações táteis, fragrância e assim por diante, que o cérebro continuamente registra. Estas sensações existem quer pensamos nelas ou não. Elas não são afetadas por nomes ou associações dadas a elas.
A maioria das culturas têm um nome para o fenômeno chamado “trovão” em Inglês. Brasileiros chamam de “trovão”, em francês “tonerre”, etc. Apesar dos nomes serem distintos, o fenômeno não é. O evento denominado “trovão” é a mesma coisa não importa do que chamamos. Verdadeiramente falando, é impossível ouvir um trovão. O que ouvimos é o som. Embora um som em particular pode ter muitos nomes, ondas sonoras em si têm a mesma propriedade, e seguem as mesmas leis físicas, em todas as culturas.
A meditação vipassanā está interessada apenas com a realidade suprema, não a realidade convencional. E a realidade suprema possuí apenas dois componentes: nāma e rūpa.
Nāma e Rūpa
Acha Sobin disse certa vez, “Não há vipassanā sem nāma e rūpa.” Eles são a meditação do insight destilados à sua essência. “Nāma” significa mente. Mente é composta de duas coisas: 1) consciência, e 2) fenômeno ou fatores mentais tais como a intenção, sentimento, desejo, atenção plena, e assim por diante. A palavra “nāma” em geral pode ser usada para designar consciência e fatores mentais.
“Rūpa” significa matéria. Praticamente falando, rūpa refere-se a impressões sensoriais bruta: cor, som, sabor, odor e sensação tátil (sensação tátil é experimentada como temperatura, pressão e movimento). Embora não as consideramos desta maneira, na filosofia Budista impressões sensoriais são consideradas um tipo de matéria. Elas são, de fato, nossa única experiência direta deste último.
Nāma e rūpa são as únicas coisas que sobram quando nos desprendemos de nomes e conceitos. Estritamente falando, eles são os únicos objetos apropriados para a atenção plena.
Nāma e rūpa servem duas funções diferentes em nossa experiência momentânea: 1) a função de saber ou cognizar, e 2) a função de ser reconhecido ou cognizado.
A faculdade que sabe é nāma, a mente. Ela está ciente de algo. Vamos chamá-la de “o conhecedor” (mas este conhecedor não deve ser igualado a um “eu”, “ego” ou identidade, pois é impessoal, anattā). O xis que está sendo cognizado é chamado de “objeto”. Um objeto por definição própria não possui consciência.
Rūpa, formas materiais, são sempre objetos, não conhecedores. Rūpa não é cônscia. Som não pode ouvir. Cores não podem ver. Fenômenos materiais devem ser “tocados” por uma mente para poderem ser experimentados. Quando a mente vê uma cor, visão acontece. Quando está ciente de um som, audição ocorre. Cor e som são objetos.
Cada momento de vida contém um “conhecedor” e um objeto. Quando estas duas coisas se juntam, experiência acontece. Por exemplo, vibrações sonoras são rūpa; a mente reconhece o som. Quando você move seu braço, o movimento é rūpa; nāma, a mente, está ciente do movimento. Fragrância é rūpa; a mente é cônscia do cheiro. Cor é rūpa; nāma, a mente, está ciente da cor.
Agora aqui é onde as coisas começam a ficar um pouco complicadas. Embora rūpas sejam sempre objetos, nem todos os objetos são rūpas. Um objeto remete a qualquer coisa da qual a mente está ciente. Pode ser corpóreo ou incorpóreo. Fenômeno mental tal como pensamentos e sentimentos podem se tornar objetos – objetos da mente – porque podemos estar cientes deles.
Neste caso, um fenômeno mental é reconhecido por outro fenômeno mental. Tendo dois nāmas em um momento pode parecer confuso, como se houvesse dois conhecedores. Mas apenas um nāma por vez pode ser o conhecedor. Um único momento de nāma ou unidade mental é que pode efetuar uma função de cada vez. Não há como ser ambos conhecedor e objeto simultaneamente.
O que acontece em alguns casos de reconhecer uma forma mental é que a mente no presente toma como seu objeto o momento prévio de consciência, aquele que surgiu e se dissipou na fração do segundo anterior. Em outras palavras, o fenômeno mental de ser reconhecido – o nāma servindo como o objeto – já acabou ou se foi. (Tecnicamente, quando o momento prévio de consciência se torna o objeto do presente, estamos reconhecendo um objeto do passado. Mas ainda está próximo no tempo para contar como um objeto legítimo de atenção plena, ou seja, ainda conta como sendo um objeto do “presente”. Isso é uma situação diferente de quando a mente dirige-se para a memória para buscar o nome de uma forma).
Em suma: rūpas são conhecidas. Nāmas conhecem (rūpas e outras nāmas). O conhecedor é sempre nāma. O objeto pode ser nāma ou rūpa.
Nāma
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Rūpa
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Conhecedor
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Objeto
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Fenômeno Mental
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Matéria Na meditação: cor, som, cheiro, sabor, toque, movimento
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A faculdade que conhece um objeto
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Um fenômeno que é conhecido
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Nāma
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Rūpa
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Conhecedor
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Objeto
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Função: conhecedor ou objeto
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Função: Objeto
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Sempre Nāma
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Nāma ou Rūpa
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Embora sejam fundamentais, realidades supremas (rūpas e nāmas individuais) não são permanente. De fato, elas estão num fluxo contínuo, surgindo e se dissolvendo tão rápido quanto relâmpagos. Sob condições normais seriamos incapazes de perceber este fluxo. Mas é possível, através da pratica de meditação vipassanā, treinar nossas mentes para ver este processo. Conseguir ver nāma-rūpa surgir e desaparecer é conhecer a si mesmo. Conhecer a si mesmo é conhecer o universo.
Ausência do “Eu”
Quando observando nāma e rūpa você não deve pensar em termos de um ego ou identidade ou descrever sua experiência com palavras. Quando observando o corpo, por exemplo, você não deveria pensar, “Eu sinto uma dormência na minha perna”. Você estaria apenas ciente da sensação. Como uma técnica de treinamento um iniciante pode rotular a sensação “dormência, dormência, etc.” ou “sentindo, sentindo”, mas sem considerar isso em termos de “eu” ou mentalmente conectando esta dormência a uma parte do corpo.
Veja outro exemplo: durante a meditação do caminhar um estudante está apenas ciente da sensação bruta do movimento ao invés de pensar, “Agora meu pé está se mexendo,” e nem está ciente do conceito “pé”. Não importa qual parte do corpo esteja se movendo, cada instância de movimento é rūpa, forma física. Em termos finais, todas as rūpas são iguais. A única diferença é que elas ocorrem em momentos diferentes. Nāmas e rūpas não são o “eu” ou ego. Elas também não pertencem a um “eu”.
O corpo físico é rūpa porque é feito de matéria. Ele pode ser movido em diferentes formas chamadas de “posturas”. Digamos que você coloque seu corpo na posição de sentar. Normalmente pensaríamos, “Eu estou sentando”, o que seria verdadeiro para a realidade convencional. Mas de acordo com a realidade suprema, é apenas rūpa que está sentada, apenas forma física, não um ego ou um “eu”. Em última instância, nem mesmo um homem ou mulher está sentando, mas sim apenas elementos físicos.
E nāma? Bem, falando num sentido supremo, nāma, a mente, também não é um “eu”. Nāma é a faculdade que reconhece que o corpo está sentado. Mas esta consciência não é equivalente a um “eu”. É apenas uma consciência impessoal que surge e desaparece de instante em instante.
A vida continua porque no próximo instante um novo momento de consciência surge. Novas unidades de consciência surgem e desaparecem uma de cada vez, e é este fluxo inteiro que geralmente consideramos como sendo um ser ou uma pessoa. Embora pensamos numa pessoa como sendo uma entidade relativamente permanente possuindo uma alma ou espírito eterno, de fato o contínuo mental é composto de unidades separadas, porém sequenciais, de consciência. A noção de um “eu” permanente, conforme o Buda ensinou, é nada mais que pura ficção. Isto não existe verdadeiramente nem no corpo e nem na mente.
Nossa experiência de instante em instante em termos de nāma-rūpa podem ser abreviadas da seguinte maneira:
Movimento é rūpa; nāma reconhece (está ciente do) movimento.
Postura é rūpa; nāma reconhece postura.
Cor é rūpa; nāma vê a cor.
Som é rūpa; nāma escuta o som.
Odor é rūpa; nāma cheira o odor.
Sensação tátil é rūpa; nāma reconhece sensação tátil.
Sabor é rūpa; nāma saboreia o sabor.
Objetos
Em qualquer tipo de meditação temos que dar à mente algo para ela se fixar. Este “algo” é chamado de “objeto da meditação”. Na prática de meditação vipassanā os únicos objetos apropriados são aqueles que ocorrem no momento presente. Algumas vezes geramos estes objetos deliberadamente, como nos exercícios de movimento da mão. Em alguns outros casos, apenas observamos o que acontece naturalmente, como os movimentos abdominais que acontecem quando respiramos.
De fato, o movimento abdominal que ocorre na respiração é o objeto de meditação mais frequentemente usado. O abdômen se expande quando inalamos e murcha quando exalamos. Na meditação vipassanā estes dois movimentos são chamados de “surgir” e “diluir”. O movimento de surgir é um objeto, o de diluir é outro.
Já que estes movimentos nunca acabam enquanto estivermos vivos, eles se tornam objetos extremamente convenientes. Você pode praticar meditação vipassanā a qualquer hora simplesmente por observar os movimentos abdominais. Há muitos outros objetos para a meditação vipassanā, porém, que serão explicados em futuros artigos.
Persistência
Outro requerimento é persistência. Se você tentou alguma vez praticar meditação vipassanā, sabe que manter a mente no presente não é tão fácil quanto soa. Perversamente, a mente sempre divaga. Não tem problema. É preciso paciência para mudar hábitos de uma vida inteira. Mas é importante não se irritar ou deixar se abater. Você deve considerar o vaguear da mente como uma oportunidade de ver impessoalidade, o “não-eu”.
Não-eu significa que todos os fenômenos no universo surgem por causa de condições que não são passíveis de ser controlados por a vontade de ninguém. Ainda sim podemos causar mudanças, mas apenas quando criamos as condições certas, e não por mera vontade. E criar estas condições leva tempo.
Portanto como deve responder quando a consciência vaguear do objeto de meditação? Simplesmente notar, “pensando, pensando, etc.” repetindo a palavra silenciosamente em sua mente e então trazendo sua atenção de volta para o objeto de meditação. Assim que perceber que a mente está indo para o passado ou sonhando com o futuro, traga-a de volta pra o momento presente onde um novo objeto, um novo som, pensamento ou movimento já está acontecendo.
Persistência é chave porque você terá que trazer a mente de volta vez após vez – literalmente milhares de vezes, até que isso se torne habitual. Não tente reprimir nenhuma emoção ou pensamento que possa surgir. Permita estes fenômenos aparecerem naturalmente. Apenas esteja ciente de quando eles ocorrerem.
Bolhas de Sabão
Imagine uma garrafa de bolha de sabão, como aquela que éramos costumados a brincar quando criança. Antes de soprar na varinha, nenhuma bolha existe. Assim que soprar, porém, algo começa a se formar. Um filme fino torna-se redondo e forma-se em uma bolha que se liberta – uma esfera flutuante e independente. Uma forma apareceu que não existia antes alguns segundos atrás. Você a viu “nascer”.
Então diante de seus olhos a bolha explode. Agora ela não mais existe. Não é possível achar traço algum dela. Mas durante o processo você presenciou a “existência” inteira da bolha, desde seu nascimento até sua morte. Este é o conceito geral de observar um objeto na meditação vipassanā.
Em última instância, todo fenômeno, tal como movimento ou som, surge, persiste e explode como uma bolha, tudo no espaço de um momento. Na prática correta da meditação vipassanā um estudante observa um objeto durante todas as três fases.
Por exemplo, digamos que um meditador estava observando os movimentos abdominais. Durante a expansão do abdômen, o estudante iria acompanhar aproximadamente o movimento durante sua duração, desde o inicio do movimento até seu fim.
A atenção deve estar igualmente alerta durante todo o processo do movimento. O movimento de surgir tem um começo e fim. Assim como o de diluir. Não é suficiente apenas notar o desenvolvimento no meio. Devemos ver o começo – e seus pontos finais também.
Após o abdômen parar de expandir, ele murcha. Este movimento é uma nova “bolha”, assim por dizer, um novo objeto, diferente do movimento de expansão. Um estudante então observa o movimento de diluir em todas as suas fases: começo, meio e fim.
Na verdade, o surgimento e diluição não são continuo. O abdômen tem que parar de expandir por uma fração de segundo antes de começar a diluir, antes da exalação começar. Pense no movimento do surgir como o movimento para cima de uma pedra jogada para o ar. Após chegar no ponto mais alto, a pedra para um instante antes de cair. Da mesma forma, o abdômen para de expandir antes de retrair.
Permanecer no momento presente significa que quando o abdômen retrai você não está pensando no último movimento de surgir, já que este já desapareceu. Pensar nele seria voltar para o passado, continuar a pensar em um objeto que já não existe mais.
Quando estiver exalando, onde está a inalação prévia? Ela não existe. Tornou-se apenas uma memória, não é mais um objeto real do momento presente. Então depois de um segundo ou dois a exalação termina e uma nova inalação começa. Agora a exalação está no passado e a nova inalação (isto é, o novo movimento surgindo) é o objeto do presente.
Os Quatro Fundamentos da Atenção Plena
O Buda identificou quatro classes de objetos adequados para cultivar o insight: o corpo, sensações, consciência e objetos mentais. Estes são chamados dos “Quatro Fundamentos da Atenção Plena”.
O corpo remete a movimento e postura; sensações incluem sensações de dor, prazer ou neutralidade. “Consciência” refere-se à pensamentos e fatores mentais que colorem a mente, fatores tais como desejo, ilusão, atenção plena, etc.
A última categoria, objetos mentais, são um grupo variado que incluem tanto fenômenos mentais como materiais. Objetos mentais incluem emoções como desejo sensual, raiva, torpor, ansiedade e dúvida (os “cinco empecilhos” da meditação). Este grupo também inclui emoções prazerosas como alegria. No lado material, objetos mentais referem-se às cinco impressões sensoriais: visões, sons, odores, toques e sabores.
Para podermos erguer um prédio, precisamos de uma base. Com estes quatro tipos de objetos como materiais, podemos construir uma forte base para atenção plena. Sabedoria surgirá automaticamente quando esta base for estabelecida. A beleza disto tudo é que, você não tem que procurar pelos materiais de construção. Eles estão literalmente a seu dispor, dentro de si mesmo no seu corpo e mente. Mas eles devem ser notados no momento presente para contar como sendo uma base. Os fundamentos da atenção plena são descrito com detalhes no Satipatthana Sutta, a “bíblia” do meditador.
O Ritmo da Realidade
Quanto tempo dura um relâmpago? Um instante? Agora cortem este instante pela metade, e pela metade da metade outra vez, e vocês terão uma ideia da duração da mente. Falando em termos gerais, nossa experiência consiste de momentos cognitivos individuais que ocorrem um após o outro. Mente e objeto surgem como num flash e somem juntos em frações de um segundo. A velocidade de seu surgimento e desaparecimento é incrível. É dito que durante a duração de um raio, milhões de unidades de consciência ocorrem.
Em outras palavras, embora temos a tendência de achar que a consciência é uma espécie de linha reta, ininterrupta, esticando desde nosso nascimento até o momento presente, a consciência na verdade ocorre como uma série de eventos cognitivos separados e extremamente breves chamados “momentos mentais”. Cada momento mental desaparece completamente antes que o próximo surja. O Buda ensinou que nada se transfere de um instante para o outro, nem mesmo um âmago chamado “alma” ou “eu”.
Contudo, porque os momentos mentais surgem e desaparecem com tanta rapidez, nosso estado diário de consciência não conseguem vê-los individualmente. Eles se mesclam um com o outro, em fluxo contínuo, assim como as lâminas de um ventilador se mesclam juntas. Isso é importante porque a mesclagem da experiência que vai de instante a instante cria uma ilusão de continuidade e permanência. Isso nos impede de perceber a verdade da impermanência.
Normalmente nossa atenção é fraca demais para manter o passo com as rápidas mudanças ocorrendo de momento a momento. É por isso que precisamos desenvolvê-la para treinar a mente. Para podermos enxergar claramente a impermanência da consciência, precisamos fazer nossa atenção plena mais rápida e forte.
Mas como podemos notar algo que está se movendo tão rápido? Mesmo se olhássemos fixadamente para um ventilador por muitos dias, ainda sim não saberíamos se ele tem três ou cinco lâminas, já que apenas veríamos uma mescla de cores. A solução seria tirar o ventilador da tomada.
Mas ao contrário do ventilador, não podemos desacelerar o passo dos fenômenos para nossa conveniência. Eles são o que são. Mesmo assim, como observadores, podemos tentar acompanhá-los. Podemos, por assim dizer, acelerar nosso próprio passo de observação. Podemos cultivar atenção plena até que ela esteja forte o bastante para ter um vislumbre dos fenômenos tal como eles são em detalhe suficiente para reconhecermos suas características.
Digamos que você está de pé ao lado de uma estrada aberta e alguém passa dirigindo a uma velocidade muito rápida Você saberia que um carro acabou de passar, mas o rosto do motorista não estaria claro. O carro passou correndo com tanta velocidade para que você pudesse ver qualquer um de seus detalhes. Então você entra em seu próprio carro e começa a seguir o veículo até que você esteja viajando na mesma velocidade e possa ver o outro motorista claramente, até mesmo ver a cor de seus olhos e cabelo.
Quando a atenção plena está consolidada ela “acompanha o outro carro” por assim dizer. Embora na verdade não seja inteiramente ou primeiramente uma consideração do tempo, quando a atenção plena está forte ela pode ver muitas das várias mudanças da mente e do corpo (apesar de não conseguir alcançar os momentos-mentais individualmente; pelo menos não até ter chegado ao nível mais avançado da prática). Quando isto ocorre, as três características da impermanência, insatisfação e impessoalidade se tornam evidente.
Podemos acreditar ser impossível acompanhar mudanças tão rápidas. Mas a boa noticia é que mesmo um ou dois momentos de ver um fenômeno surgir e desaparecer pode mudar nossas vidas se esta percepção for clara.
Quando a atenção plena e o conhecimento de insight estiverem maduros, sabedoria e outros fatores juntam-se. As escrituras budistas nos dizem que quando todos estes fatores mentais se encontram, a mente, em uma questão de instantes, transcende nāma e rūpa. É dito que a consciência toca algo imune às mudanças, um elemento livre de todo sofrimento. Esta experiência é chamada de “despertar” ou “iluminação”.
Mas para podermos fazer a atenção plena rápida ou madura o bastante temos que treiná-la por primeiramente desacelera-la – desacelerando nossas ações. O que pode soar um pouco paradoxal, mas pense em um estudante de piano. Para que ele possa tocar tão rápido quanto o vento em um concerto, ele tem que passar meses treinando lentamente em casa.
Apenas estando consciente ou atento de uma forma geral não é o suficiente para vermos a impermanência do fluxo mental. Por este motivo, praticamos o método de atenção plena “momento a momento”.
Isto se refere à observação passo a passo do corpo e mente, literalmente de um momento individual para o outro. Na meditação do caminhar, por exemplo, cada passo é quebrado em seis movimentos separados, cada um constituindo um “momento” individual. Como dividir um fio de cabelo em dois, a consciência do meditador se torna mais sutil e precisa. Ele se torna capaz de notar os momentos mais breves cada vez mais claramente. Quanto mais ele pratica, mais energia e momento a atenção plena acumula, até que consiga “alcançar” e ver claramente nāma e rūpa surgindo e desaparecendo no momento presente.
O Malabarista
O modo de focar em objetos na meditação vipassanā difere-se do modo de focar na prática da meditação para tranquilidade (samatha). Imaginem um malabarista. Seu foco é pegar e soltar. O mesmo é válido para a meditação vipassanā. “Note e esqueça” é o lema. O estudante tem que aplicar as duas metades do lema se quiser obter o beneficio máximo da pratica.
Um malabarista tem que focar se quiser pegar a bola. Ele tem que saber onde colocar sua atenção, e então manter sua mente neste lugar. Enquanto a bola estiver indo em sua direção, ele não pode pensar na outra que já foi jogada. Ele fracassará se ficar distraído por um barulho ou se seu olhar for para outra direção. O meditador, também, deve manter sua atenção no momento presente ou ele deixará a bola cair – isso é, perderá sua atenção no objeto de meditação.
Agora para a parte de “esquecer”: assim que o malabarista catar a bola ele a solta – caso o contrário como ele conseguiria pegar a próxima? Sua atenção não se fixa em um objeto. Ele a mantém em movimento, pulando de um objeto para o próximo. Que tipo de artista pararia pra olhar a bola que ele acabou de pegar, e em seguida ficar relutante em soltá-la só porque ele gostou da cor? Da mesma forma, assim que o meditador notar um objeto ele deve soltá-lo, se desprender dele, ou então ele não será capaz de notar o próximo fenômeno. Sua atenção, apesar de não interrompida, não se finca em nada em particular.
Se o mesmo objeto – um som, digamos – aparece novamente depois de ter sido notado uma vez, o meditador pode observa-lo uma segunda vez e depois soltá-lo, e assim por diante. Ele notaria, “ouvindo, ouvindo, ouvindo, etc.” em momentos sequenciais, desprendendo-se depois de cada um.
Os Cinco Sentidos
O estudante de meditação precisa entender como observar as cinco impressões sensoriais – visões, sons, odores, toques e sabores – já que estes são os objetos que mais frequentemente ativam desejo e ódio. O Malukyaputta Sutta diz, “Enquanto os fenômenos são vistos, ouvidos, pensados, ou reconhecidos, apenas deixe que eles sejam vistos, ouvidos, pensados ou reconhecidos naquele momento. Quando ver, apenas veja; quando ouvir, apenas ouça; quando pensar, apenas pense; e quando reconhecer ou souber, apenas reconheça” (“saber ou reconhecer” inclui cheirar, saborear e tocar).
Deixar estes fenômenos serem como eles são “naquele momento” significa não se identificar ou descrevê-los de forma alguma. Assim que você ver, ouvir, cheirar, saborear, tocar, pensar ou reconhecer algo, apenas esteja ciente da sensação bruta. Não adicione descrições mentais como “boa” ou “má”, etc. E não continue a pensar sobre a visão ou som depois do memento inicial do contato. Novos contatos de objetos sensoriais estão ocorrendo o tempo inteiro. Se você se prender a uma sensação passada não poderá prestar atenção a que está ocorrendo no momento presente, já que a mente apenas pode saber um objeto de cada vez.
Quando a atenção plena e insight estiverem maduros eles serão capazes, por assim dizer, de cortar o fluxo mental em um estágio muito inicial. Conseguir ver as coisas como elas são “naquele momento” significa vê-las como elas são antes do ato de nomea-las. Atenção plena madura pode parar o fluxo mental no ponto de receber a impressão sensorial bruta, antes que a mente rotule o objeto.
Quando conseguir “pegar” a sensação antes do nome aparecer, não haverá um sentimento que seja bom ou ruim. Todas as formações serão vistas da mesma forma: neutra e sem significações com nenhuma diferença essencial entre um som, emoção, ou pensamento. Esta é a realidade. É a forma como as coisas realmente são. É apenas as formações mentais que impomos a estes fenômenos que os designam como sendo belos ou feios, prazerosos ou desagradáveis.
O objetivo durante a meditação é estar ciente apenas do bruto ato de ver, ouvir, cheirar, mover-se, pensar, e assim por diante. Quando você se restringe de conceituar um objeto, ganância, ódio e ilusão não terão uma chance de se manifestarem. Então verá que cada impressão sensorial dura apenas um instante antes de desaparecer.
Contudo, sendo um meditador iniciante ou intermediário, você provavelmente não será capaz de “apenas ver” ou “apenas ouvir”. Você estará ciente de nomes, e os valores pressupostos que os assombram. Não tem problema. Apenas não foque nestes rótulos convencionais. Não pense, “Agora eu estou vendo uma cadeira, ouvindo um pássaro, movendo meu pé, etc”. Ao invés disso é apenas: ver, ouvir, mover, etc. Deixe os significados convencionais estarem presentes, mas ignore-os. Não se deixe afetar por julgamentos como bom ou mal. E ao mesmo tempo, mantenha em vista o objetivo do fenômeno puro o máximo que puder. Conforme a compreensão clara for crescendo, você se encontrará cada vez mais capaz de distinguir a pura realidade fenomenal daquilo que é apenas conceitual.
Separe-se
Durante a meditação é possível tornar qualquer fenômeno em um objeto de atenção plena ao invés de se identificar com ele. Você pode separar-se do show das sensações que está continuamente surgindo e desaparecendo. Por fazer isto você protege sua mente do sofrimento. Torna-se aparente que pensamentos, emoções e sensações não são de fato uma parte do conhecedor. Já que estes são por sua vez objetos impessoais, e não o sujeito, você pode virar a luz da consciência ao contrário e olhá-los como se eles estivessem “fora” de você.
Portanto sempre que se sentir que um fenômeno é uma parte inseparável do conhecedor, esta parte está próxima demais para ser observada porque está sendo vista como uma parte do seu “eu”, vire a consciência ao contrário cento e oitenta graus e observe a mesma coisa. Isto é outra forma de dizer, “Não se torne o objeto”.
Quanto mais progredir na meditação, mais será capaz de sair destas coisas que são vistas na categoria do “eu”; mais será capaz de ver que tudo pode ser observado, até mesmo a mente. E quando souber ou reconhecer um objeto com consciência imparcial, você separa-se dele. Você não está envolvido nele. Você retirou o seu “eu” dele.
Falando em termos gerais, até a mente é outro fenômeno, é impessoal porque não segue nossos desejos. Este é o significado de “não-eu”. Podemos continuar virando a consciência em torno de si mesma para observar o conhecedor cada vez mais, um instante após o outro. Desta forma atenção plena varre cada forma de aflição da mente. Eventualmente, as escrituras nos dizem, tocaremos algo além do mundo condicional da mente e matéria.
Mas normalmente nos equivocamos em relação aos objetos – especialmente pensamentos, emoções ou sentimentos – como sendo aspectos do nosso ego. Pensamos, “Eu estou com sono” ou, “Eu estou entediado”. Notem o “eu” aqui. É uma forma convencional necessária para nossa fala do dia-a-dia. Esta identificação ao “eu” acontece quase que invisivelmente. A mente, em um truque muito veloz, assume que o tédio é uma parte de si mesma ao invés de ser um objeto a ser observado.
Se tédio, ansiedade, ou qualquer outro estado mental surgir, vire o raio da consciência sobre eles e note “tédio” ou “cansaço”. Não se aproprie deles como sendo aspectos do seu ego que de alguma forma lhe pertencem. Coloque todo o seu foco longe destes objetos e veja-os para saber como eles são, para ver que essas condições surgem momentaneamente, apenas para desaparecer.
Já que surgem e desaparecem tão rápido, como então poderiam ser partes de um ser permanente? Quando você não está engajado com o tédio, sonolência, ou ansiedade, quando você compreende que eles não estão intrinsecamente juntos do conhecedor e ao invés disso os tornam objetos da consciência, tudo começa a mudar.
Se puder virar o raio da sua consciência sobre o fenômeno mental, sua mente não irá se envolver com sofrimento. Você pode direcionar este raio de atenção plena para qualquer coisa. Não há nada que fique entre o circulo imaginário do ego que não possa ser feito em um objeto. Seja lá o que acontecer, você pode separar sua consciência e observar. Se manter este passo, então, não importa o que acontecer, a atenção plena será capaz de manter a mente livre de apego, agitação e estresse.
Pare a Roda
Apesar de que os benefícios da atenção plena podem ser vistos no aqui e no agora, é apenas no contexto dos ensinamentos budistas sobre o renascimento que a razão de ser para a prática da atenção plena se torna clara. No sentido final, atenção plena é praticada com vista para melhorar e eventualmente prevenir, vidas futuras.
O Budismo ensina que todo ser renasce vez após vez em vários mundos de acordo com suas ações. Até que a mente de uma pessoa esteja totalmente purificada não há um fim para este ciclo. O objetivo final do Budismo, e da prática do insight, é a libertação deste ciclo de nascimento e morte, libertação dos ciclos de existências condicionadas chamado de “samsara”. É possível para esta libertação, chamada de “Nibbana”, acontecer na vida presente se conseguirmos desenvolver atenção plena e sabedoria a um grau suficiente.
O Buda ensinou que nascimento e morte (e o tempo entre estes dois eventos) são sempre embutidos com algum grau de dukkha, insatisfação. Embora estejamos relativamente felizes agora, a existência está manchada em seu nível mais básico porque seus componentes, mente e matéria, são instáveis e impermanentes, continuamente surgindo e desaparecendo. Qualquer satisfação que possamos tirar destes dois componentes é temporária e maculada com o medo de perdê-la. No melhor dos casos, felicidade mundana é uma mistura de prazer e ansiedade. Felicidade e infelicidade são inseparáveis, assim como a cara de uma moeda é inseparável da coroa. É como o Rei Jogador em Hamlet disse, “Aonde a alegria mais se deleita, tristeza mais se lamenta”.
Mas o Buda ensinou que a condição chamada “Nibbana”, que transcende nascimento e morte, é uma felicidade superior e pura, livre que qualquer mácula da ansiedade. E é permanente.
Embora nossas vidas possam ser relativamente prazerosas agora, todos os seres, o Buda disse, acumularam algum grau de kamma (karma) nocivo de más ações passadas (incluindo ações feitas em vidas passadas). Estas ações passadas podem se manifestar como um resultado a qualquer momento. Não podemos predizer quando isso acontecerá. Por causa disso, há sempre a possibilidade de renascermos em um mundo de sofrimento e ter que suportar condições horrorosas como doença, destituição, fome, escassez, etc. em uma vida futura.
Mas na ausência de nascimento, não há perigo. Nenhum sofrimento pode ocorrer. Ausência de nascimento não significa o vazio do nada no senso comum. Significa o elemento chamado “Nibbana”, a cessação de ganância, ódio e ilusão, cessação esta que o Buda chamou da maior felicidade de todas.
A prática da atenção plena para ou corta eventualmente este ciclo de nascimento-morte- renascimento. Desejo e ignorância são as causas necessárias para o renascimento. A prática da atenção plena gradualmente elimina o desejo, ódio e ilusão da mente. Quando a ilusão for eliminada, renascimento não poderá ocorrer, e nem o sofrimento.
Cortando o Mal Pela Raiz
Eventos externos não são as verdadeiras causas do sofrimento. Eles são apenas os galhos. A raiz está dentro de nós. O propósito da meditação vipassanā é eliminar a causa raiz do sofrimento, e não simplesmente nos fazer sentir bem temporariamente. Mas para podermos puxar a raiz será de ajuda saber como ela se estabeleceu.
A pergunta se torna, então, como o sofrimento surge em primeiro lugar? Toda forma de sofrimento (até mesmo aqueles que parecem acidentais) é o resultado de um processo que é gerado pela mente. Um exemplo nos mostrará como dukkha (insatisfação) é gerado por uma sequência de causa e efeito, uma sequência que depende de nossas reações a visões, sons e assim por diante.
Digamos que você vá até uma loja e vê um vaso de prata. Em termos gerais, a sensação bruta de ver não é bem boa e nem má. A cor em si não é bonita ou feia. Mas ao invés de parar na sensação bruta sua mente vai além e adiciona os conceitos de beleza ou feiura.
Vamos assumir que neste caso ela acrescente o rotulo de beleza. Tendo visto a visão como bela, você gosta e deseja-a. Você continua pensando nela até mesmo depois de ter saído da loja e voltado para casa, quando a imagem do próprio vaso já não está mais diante de você. Quanto mais você pensa nela, mais o seu desejo aumenta. Incitado pelo desejo, lhe ocorre o pensamento de ir roubar o vaso.
No Budismo, pensamentos intencionais são considerados uma forma de ação. O ato físico de roubar um vaso também é uma ação. Ações intencionais físicas, verbais e mentais são chamados de kamma. Kamma sempre tem um resultado para aquele que o fez.
Quando estas ações físicas e mentais – isto é, estes kammas – estão enraizados no desejo, ódio e ilusão, eles resultam em algo desagradável. Este resultado surge na forma de uma sensação: visões, sons, cheiros, sabores, sensações táteis ou fenômenos mentais desagradáveis. Nossas várias ações, quando enraizadas na ilusão, também resultam em renascimento. Reaparecer em samsara, a roda do nascer e morrer, significa ter que passar por vários tipos de sofrimento.
Mas se conseguirmos parar as engrenagens em determinado ponto, a sequência inteira acabará. A maquinaria causal que nos prende ao nascimento e morte entrará em colapso. Em qual ponto podemos parar o processo? No ponto entre o contato inicial com um objeto e o ato de gostar ou desgostar. Se treinarmos repetidamente e sistematicamente para reconhecermos impressões sensoriais com uma atenção imparcial, ao invés de reagir com atração ou aversão, o processo que gera sofrimento cessará. Então não precisaremos mais ter que passar por resultados kármicos desagradáveis.
Mas para isso temos que ter certeza que estamos observando nāma e rūpa, ou as impressões sensoriais brutas, ao invés dos nomes convencionais que atribuímos. Tais descrições como “agora meu pé está se movendo”, ou “eu estou acompanhando minha respiração” ainda estão no nível de nomes e rótulos. Estes objetos – “pé”, “respiração”, - ainda são conceituais, não são a verdade. A verdade nestes exemplos é só o movimento em si. Em termos gerais, não há ninguém ali – nenhuma pessoa – se movendo. E nem é uma perna ou um braço que se move, são apenas elementos físicos. Isso é rūpa. O movimento não está acontecendo a você ou em você. Está apenas aparecendo e desaparecendo, como se fosse, no espaço. Se, durante a prática da meditação, você puder evitar o erro de observar objetos convencionais e ao invés disso reconhecer nāma e rūpa, você fará progresso contínuo até a meta.
Este é o “Caminho do Meio”, um meio entre dois extremos – desejo e aversão. O truque está em perceber estas coisas cedo o suficiente para experimentar apenas o fenômeno bruto no momento do contato ao invés de coisas convencionais e nomeadas. Desta forma, ficará fácil de cortar o desejo e repulsa. Como o fenômeno bruto, nāma e rūpa, não são nem bons e nem maus, é impossível gostar ou desgostar deles. Se você ver nāma e rūpa claramente, inevitavelmente pensará, “Qual é o grande negócio disso tudo? Como foi que eu me apeguei a isto?” Quando a realidade é vista tal como ela é, apego e aversão vão embora naturalmente, sem a necessidade de um esforço maior. Por continuar a observar a mente e matéria imparcialmente, você eventualmente cessará de gerar novo kamma, assim cortando o processo mental que resulta em sofrimento. E neste ponto, é dito, a mente experimentará a maior felicidade de todas.
*Artigo traduzido do Vipassana Dhura Meditation Society, este trabalho não é meu, apenas compartilho para ajudar na divulgação do Dhamma, todos os direitos da autora reservados. O texto original em inglês pode ser visto em http://www.vipassanadhura.com/index.htm