quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

O Poder de Cura dos Preceitos


O Poder de Cura dos Preceitos

Por

Thanissaro Bhikkhu

Tradução

Davi Coêlho

O Buda era como um médico, tratando as doenças espirituais da humanidade. O caminho de prática que ele ensinou era como um percurso de terapia para os corações e mentes sofredores. Este modo de compreender o Buda e seus ensinamentos data por volta dos textos mais antigos, e ainda é uma ideia bem recorrente. A prática da meditação budista é frequentemente apresentada como uma forma de cura, e muitos psicoterapeutas agora recomendam que seus pacientes experimentem a meditação como parte seus tratamentos. 

Após alguns anos ensinando e praticando meditação como terapia, porém, muitos de nós acabamos descobrindo que a meditação por si só não é o suficiente. Em minha própria experiência, tenho percebido que os meditadores ocidentais tendem a serem atingidos mais frequentemente por certa obscuridade e falta de autoestima do que qualquer Asiático que já ensinei. Os seus psiques estão tão feridos pela civilização moderna que lhes faltam a resistência e persistência precisa antes que a concentração e práticas de insight comecem a ser genuinamente terapêuticas. Outros terapeutas também notaram este problema e, em consequência disso, muitos deles decidiram que o caminho Budista é insuficiente para nossas necessidades específicas. Para preencher esta lacuna eles experimentaram com modos de implementarem a prática da meditação, combinando-a com tais coisas como mito, poesia, ativismo social, saunas, rituais matutinos, e até o toque ritualístico de tambores. O problema é que, pode ser que o caminho Budista não esteja em falta de nada, mas que simplesmente não estamos seguindo o curso de terapia prescrito pelo Buda em sua íntegra. 


O caminho do Buda consistia não apenas de atenção plena, concentração e práticas de insight, mas também de virtude, começando com os cinco preceitos. De fato, os preceitos constituem o primeiro passo na jornada. Há uma tendência no Ocidente de dispensar os cinco preceitos como regrinhas que aprendíamos na escola de Domingo na igreja, que estão atadas às normas culturais que não se aplicam mais a nossa sociedade moderna, mas isso acaba se desviando do papel que o Buda intencionava para eles: eles são uma parte do percurso de terapia para mentes feridas. Em particular, eles estão voltados para curarem duas enfermidades que estão por trás da autoestima: remorso e negação. 

Quando nossas ações não se enquadram com certos padrões de comportamento, nós ou (1) sentimos remorso de nossas ações ou (2) nos engajamos em dois tipos de negação, seja (a) negando que nossas ações não aconteceram de fato ou (b) negando que os padrões são realmente válidos. Estas reações são como feridas na mente. Remorso é uma ferida aberta, sensível ao toque, enquanto negação é como uma cicatriz dura e retorcida dentro de um ponto sensível. Quando a mente está ferida deste modo, ela não pode estabelecer-se confortavelmente no momento presente, pois encontra-se estabelecida em carne exposta e viva ou nós calcificados. Mesmo quando forçada a ficar no presente, é apenas de um modo parcial, contorcido e tenso e portanto os insights que ela adquire são parciais e contorcidos também. Apenas se a mente estiver livre de feridas e cicatrizes é que pode ser esperado dela que se estabeleça confortavelmente e livremente no presente, e que dê abertura para discernimento não distorcido.   

É ai onde os cinco preceitos entram: eles são programados para curar estas feridas e cicatrizes. Uma autoestima saudável surge a partir de uma vida vivida a um conjunto de padrões que são práticos, claros, humanos, e dignos de respeito; os cinco preceitos são formulados de tal forma que eles provem esse conjunto de padrões.  

Prático: os padrões estabelecidos são simples – nenhuma matança intencional, roubo, sexo ilícito, mentiras ou consumo de drogas e álcool. É perfeitamente possível viver em linha com estes padrões. Nem sempre fácil ou conveniente, mas sempre possível. Eu já vi esforços por parte de alguns para traduzirem estes preceitos em padrões que soam mais nobres e elevados – o segundo preceito, por exemplo, significando não abusar os recursos naturais do planeta – mas até mesmo as pessoas que reformulam os preceitos dessa forma admitem que é impossível fazer jus a eles. Qualquer um que já tenha lidado com pessoas psicologicamente fragilizadas sabem que na maior parte dos casos o dano surge de ter sido dada padrões impossíveis de serem enquadrados em suas vidas. Se você puder dar aos outros padrões que requerem apenas um pouco de esforço e atenção, mas que são possíveis de serem atendidos, suas autoestimas disparam dramaticamente conforme descobrem que são capazes de se enquadrarem nestes padrões. Eles conseguem assim, enfrentar tarefas com mais confiança. 

Claros: Os preceitos são formulados sem nenhum tipo de “se, e, ou mas”. Isto significa que eles dão uma orientação clara, sem espaço para ficar tentando encontrar furos, falhas ou formas de escapá-los. Uma ação ou se enquadra ou não se enquadra com os preceitos. Novamente, padrões deste tipo constituem uma forma saudável de se viver. Qualquer um que teve filhos sabe que, embora eles possam reclamar de regras duras, eles se sentem mais seguros com elas do que com regras que são vagas e sempre abertas a negociação. Regras claras não permitem que intenções escondidas se manifestem pelas partes mais obscura da mente. Se, por exemplo, o preceito contra a matança permitisse que você matasse seres vivos quando sua presença fosse inconveniente, isso colocaria sua conveniência em um nível maior do que sua compaixão pela vida. Conveniência se tornaria seu padrão indireto – e como sabemos, padrões indiretos proporcionam grandes terrenos férteis para hipocrisia e negação proliferarem. Se, porém, você seguir pelos padrões dos preceitos, então como o Buda disse, você está fornecendo segurança ilimitada para a vida de todos. Não há condições sobre as quais você tiraria a vida de qualquer ser, não importa o quão inconveniente eles possam ser. Em termos dos outros preceitos, você está provendo segurança ilimitada para com a propriedade e sexualidade alheia, e honestidade e atenção ilimitada (no caso de mentiras e o consumo de intoxicantes) em sua relação com os demais. Quando você descobrir que pode confiar em si mesmo em casos como este, então ganhará um senso saudável de autorrespeito inegável. 

Humano: Os preceitos são humanitários ambos para a pessoa que os observam e para as pessoas ou seres envolvidos por suas ações. Se observá-los, estará se alinhando com a doutrina do karma, que nos ensina que as forças mais importantes formando sua experiência de mundo são seus pensamentos, palavras e atos intencionais que você escolhe no momento presente. Isto significa que você não é insignificante (grifo meu). Toda vez que faz uma escolha – em casa, no trabalho, no lazer – você está exercendo seu poder sobre a construção contínua do mundo. Ao mesmo tempo, este princípio permite você a medir a si mesmo em termos que estão totalmente sobre seu controle: suas ações intencionais no momento presente. Em outras palavras, estes preceitos não te forçam a se medir em termos de beleza, força, intelecto, poder financeiro, ou qualquer outro critério que dependa menos do seu karma presente do que karma adquirido no passado. Igualmente, estes preceitos não brincam com sentimentos de remorso ou te forçam a lamentar os seus escorregões cometidos no passado. Ao invés disso, eles focam sua atenção na possibilidade sempre presente de viver de acordo com seus padrões no aqui e agora. Se você estiver convivendo com pessoas que observam os preceitos, descobrirá que a forma como se relaciona com estes não estão maculadas por suspeitas ou medos. Eles consideram seu desejo pela felicidade tão próximo quanto o deles. Sua dignidade como indivíduos não dependem de situações na quais deve haver perdedores e vencedores. Quando falam sobre desenvolver amor universal e atenção plena em sua meditação, você vê isso se refletir em suas ações. Neste modo os preceitos nutrem não apenas indivíduos saudáveis, mas também uma sociedade saudável – uma sociedade na qual autorrespeito e respeito mútuo não entram em conflito. 

Digno de respeito: quando adotar um conjunto de padrões, é importante saber de quem esses padrões são e ver de onde estes padrões surgem, por que em consequência disso, estará se juntando a um grupo, procurando a aprovação deste, e aceitando seus critérios como sendo o certo e o errado. Neste caso, você não poderia pedir por um grupo melhor para se juntar: o Buda e seus nobres discípulos. Os cinco preceitos são chamados de “padrões atraente aos nobres”. Do que as escrituras nos dizem sobre os nobres, eles não aceitam padrões simplesmente na base da popularidade. Eles colocaram sua vida na linha para ver o que conduz à verdadeira felicidade, e viram por si só, por exemplo, que toda mentira é patológica, e que qualquer sexo fora de um relacionamento estável e compromissado é inseguro. Outras pessoas podem não respeitá-lo por seguir os cinco preceitos, mas os nobres o respeitam, e seu respeito é mais digno do que aquele de qualquer outra pessoa no mundo.

Porém, muitas pessoas acham esquisito juntar-se ao um grupo abstrato, especialmente quando nem conheceram ainda algum nobre em pessoa. É difícil ter um coração cheio de boa vontade e generoso quando a sociedade em sua volta ri abertamente dessas qualidades e ao invés disso valoriza coisas como poder sexual ou habilidades predatórias de negócios. É ai que as comunidades Budistas entram. Seria muito bom e útil se grupos Budistas divergissem abertamente com o teor imoral predominante em nossa cultura e deixassem bem claro de uma forma amigável que eles dão valor à bondade de coração e à conduta refreada entre seus membros. Ao fazer isto, eles proveriam um ambiente saudável para aderir ao compromisso total com o percurso de terapia prescrito pelo Buda: a prática da concentração e discernimento em uma vida virtuosa. Onde quer que tenhamos este tipo de ambiente, vemos que a meditação não precisará ser “preenchida” com elementos externos, pois estará baseada na realidade de uma vida bem vivida. Você poderá olhar agora para os padrões pelo qual você vive, e então respirar confortavelmente como um ser humano de pleno direito e inteiramente responsável. Pois é isso o que você é.

Texto original em inglês disponível no endereço: http://www.accesstoinsight.org/lib/authors/thanissaro/precepts.html

Um comentário:

  1. Texto essencial, explica muita coisa. Acho muito importante a fé no Buddha, Dhamma e Sangha.

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