sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

A Vida Não é só Sofrimento


A Vida Não é só Sofrimento

Por

Thanissaro Bhikkhu

Tradução

Davi Coêlho





“Ele me mostrou o esplendor do mundo.”
Foi assim que meu mestre, Ajaan Fuang, certa vez definiu sua gratidão pelo seu mestre, Ajaan Lee. Suas palavras me pegaram de surpresa. Eu havia recentemente chegado para estudar com ele, ainda recém-formado de uma escola onde eu tinha aprendido que Budistas sérios tinham um modo pessimista de ver o mundo. E ainda sim, aqui estava um homem que tinha dedicado sua vida inteira a prática dos ensinamentos do Buda, falando para mim sobre o esplendor do mundo. É claro, por “esplendor” ele não estava se referindo às alegrias das artes, comida, viagem, esportes, vida familiar, ou qualquer outra seção do jornal de Domingo. Ele estava falando sobre um tipo de felicidade mais profunda, que vem de dentro. Conforme o fui conhecendo, fui adquirindo um senso do quão feliz aquele homem era. Ele poderia ser cético sobre muitos dos pretextos humanos, mas eu jamais o descreveria como sendo pessimista ou negativo. “Realista” seria mais próximo da verdade. E mesmo assim por um bom tempo eu não conseguia fazer sentido do paradoxo que sentia sobre como o pessimismo das escrituras Budistas poderiam se incorporar em uma pessoa tão solidamente feliz. 
   Apenas quando comecei a olhar diretamente às escrituras mais antigas foi que compreendi que o que parecia ser um paradoxo era na verdade uma ironia – a ironia de como o Budismo, que oferece um modo de vista positivo sobre o potencial do ser humano para encontrar a verdadeira felicidade, foi rotulado no Ocidente como negativo e pessimista.
   Provavelmente você já ouviu o boato de que “a vida é sofrimento” é o primeiro princípio Budista, a Primeira Nobre Verdade do Buda. É um boato com bons credenciais, espalhado por acadêmicos bem respeitados e alguns professores do Dhamma também, mas não deixa de ser um boato de qualquer forma. A verdade sobre as Nobres Verdades é bem mais interessante. O Buda ensinou quatro verdades – e não só uma – sobre a vida: há sofrimento, há uma causa para o sofrimento, há um fim para o sofrimento e há um caminho prático que põe um fim ao sofrimento. Estas verdades, quando vistas como um todo, estão longe de serem pessimista. Elas são uma abordagem prática para a resolução de um problema – da mesma forma que um médico aborda uma doença – ou um mecânico um motor com defeito. O problema é identificado, e uma causa é procurada. Então um fim é posto ao problema eliminando sua causa.
    O que é especial a respeito da abordagem do Buda é que o problema que ele ataca é o escopo inteiro do sofrimento humano, e a solução que ele nos oferece é algo que todos seres humanos podem fazer por si próprios. Assim como um médico com um remédio certeiro para sarampo não tem medo de sarampos, o Buda não tem medo de nenhum aspecto do sofrimento humano. E, tendo experimentado uma felicidade totalmente incondicional, ele não tem medo de apontar o sofrimento e estresse inerente em lugares onde a maior parte do mundo preferiria não ver – nos prazeres condicionados ao qual nos apegamos. Ele nos ensina a não negar o sofrimento e estresse ou correr deles, mas permanecer firme e enfrentá-los, a examina-los cuidadosamente. É deste modo – pela compreensão – que podemos remover sua causa e pôr um fim a ele. Totalmente. É possível ser mais otimista do que isso?
    Um bom número de escritores apontaram a esperança básica inerente nas Quatro Nobres Verdades, e mesmo assim o boato do pessimismo Budista persiste. Eu imagino porque. Uma possível explicação é que, ao chegar no Budismo, nós subconscientemente esperamos que ele resolva problemas que tiveram um longo histórico em nossa cultura. Por começar com o sofrimento como sua primeira verdade, o Buda parece estar oferecendo sua posição em uma questão com um longo passado no Ocidente: o mundo é essencialmente bom ou mal?
    De acordo com Gênesis, esta foi a primeira questão que ocorreu à Deus depois que ele terminou sua criação: teria ele feito um bom trabalho? Ele então olhou para o mundo e viu que era bom. Depois disso, pessoas no Ocidente rejeitaram ou ficaram do lado de Deus em sua resposta, mas ao fazer isso eles afirmaram que essa questão era uma que valia a pena ser perguntada em primeiro lugar. Quando Theravada – a única tradição Budista a enfrentar o Cristianismo quando a Europa colonizou a Asia – estava procurando por meios de evitar o que via como sendo um incômodo missionário, Budistas que haviam recebido sua educação dos missionários assumiam que a questão era válida e pressionaram a primeira nobre verdade em serviço como uma refutação ao Deus Cristão: veja o quão miserável a vida é, eles disseram, e é difícil aceitar o veredito de Deus sobre o seu trabalho.
    Esta estratégia de debate pode ter marcado alguns pontos naquela época, e é fácil encontrar apologistas Budistas que – ainda vivendo no passado colonial – continuam tentando marcar os mesmos pontos hoje em dia. O verdadeiro problema, na verdade, é se o Buda tinha a intenção com sua primeira nobre verdade, de responder a questão de Deus em primeiro lugar e – mais importante – se nós realmente vamos estar tirando o maior proveito da primeira nobre verdade se olharmos as coisas desse ponto de vista.
   É difícil imaginar o que você poderia conseguir fazer ao dizer que a vida é sofrimento. Você teria que passar boa parte do seu tempo argumentando com pessoas que veem mais do que apenas sofrimento na vida. O próprio Buda diz isso em um de seus discursos. Um brâmane chamado Dighanakha veio até ele certa vez e anunciou que ele não concordava com nada. Este teria sido um momento perfeito para o Buda, se ele quisesse, ter posto diante dele a verdade que a vida é sofrimento. Mas ao invés disso, ele atacou a noção inteira de afirmar se a vida é válida de aprovação ou não. Há três maneiras possíveis de se responder essa questão, ele diz: (1) nada é digno de ser aprovado, (2) tudo é digno de ser aprovado, (3) algumas coisas são e outras não. Se você aderir a qualquer uma dessas opiniões, você acaba argumentando com pessoas que aderem às outras duas opiniões. E isso te serviria para quê?
   O Buda ensinou à Dighanakha a olhar mais aproximadamente o seu corpo e sentimentos como instâncias da primeira nobre verdade: eles são estressantes, inconstantes e não merecem ser apegados/identificados como sendo o ‘eu’. Dighanakha segue as instruções do Buda e, ao deixar ir seu apego ao corpo e sentimentos, ganhou um primeiro olhar do Imortal, de como é estar totalmente livre do sofrimento.
   O ponto dessa história é que tentar responder a questão de Deus, fazendo um julgamento sobre o mundo, é uma perda de tempo. E oferece um melhor uso da primeira nobre verdade: enxergar as coisas, não em termos de “mundo” ou “vida”, mas simplesmente saber identificar o sofrimento para que você possa compreendê-lo, abandoná-lo, e atingir a libertação. Ao invés de nos cobrarmos opiniões vazias – que, na verdade, seria pedir de nós que sejamos partidários cegos – a primeira nobre verdade pede para olharmos com mais atenção e ver precisamente onde o problema do sofrimento está.
    Outros discursos mostram que o problema não está no corpo e sentimentos em si mesmos. Eles em si não são sofrimento. O sofrimento surge em apegar-se à eles. Em sua definição da primeira nobre verdade, o Buda resumiu todos os tipos de sofrimento na frase, “os cinco agregados do apego”: apego à forma física (incluindo o corpo), sensações, percepção, construções mentais, e consciência. Contudo, quando os cinco agregados estão livres do apego, o Buda nos diz, eles nos levam diretamente para o beneficio ao longo prazo e felicidade.
    Portanto, a primeira nobre verdade, em suma, é que o apego é sofrimento. É por causa do apego que dor física se torna dor mental. É por causa do apego que envelhecimento, doença e morte são estresse mental. O paradoxo aqui é que, ao apegar-se às coisas, nós não as aprisionamos ou fazemos com que elas fiquem sujeitas ao nosso controle. Ao invés disso, nós nos aprisionamos. Quando compreendemos nosso cativeiro, naturalmente procuraremos por uma saída. E é ai que está a importância de que a primeira nobre verdade não diga que “A vida é sofrimento”. Se a vida fosse só sofrimento, onde é que nós procuraríamos por um fim para o mesmo? Nós estaríamos com nada sobrando a não ser morte e aniquilamento. Mas quando a verdadeira verdade é que o apego é sofrimento, nós simplesmente temos que procurar onde está este apego e eliminar sua causa. 
    Este processo leva tempo, contudo, porque nós simplesmente não podemos dizer para a mente não se apegar. É como uma criança desobediente: se você forçar a largar certa coisa enquanto você estiver de olho, ela vai achar algum canto escondido onde você não possa ver, e vai começar a se apegar ali. De fato, o canto mais escondido da mente – ignorância – é a causa principal que dá origem à causa mais próxima do apego: o desejo. Portanto, como a quarta nobre verdade, o Buda recomenda um caminho de prática para se livrar desse canto escondido. Este caminho tem oito fatores: entendimento correto, intenção correta, fala correta, ação correta, meio de vida correto, esforço correto, atenção plena correta, e concentração correta. De uma forma mais abreviada, os termos do Buda para a prática são “abandonar e cultivar”: abandonar atividades que dificultam a consciência, e cultivar qualidades que expandem sua clareza e abrangência.
    O abandono – no qual você se restringe de pensamentos, palavras e ações não habilidosas inspiradas pelo desejo – é obviamente um antídoto para o apego. O cultivo, porém, tem uma parte mais paradoxal, pois você deve se agarrar às qualidades hábeis da atenção plena, concentração e discernimento que nutrem a consciência até estarem inteiramente maduras. Quando chegar a este ponto é que você pode se desapegar delas. É como subir em uma escada para chegar até o teto: você agarra um degrau mais alto para que você possa soltar de um degrau mais baixo, e depois agarrar um degrau ainda mais alto. Conforme os degraus vão ficando cada vez mais longe do chão, sua visão se torna mais expansiva e você pode ver precisamente onde os apegos da mente estão. Você adquire um sentindo mais aguçado de quais partes da experiência pertencem a qual nobre verdade e o que deve ser feita com estas: as partes que são sofrimento devem ser compreendidas, as partes que causam sofrimento devem ser abandonadas, as partes que formam o caminho para o fim do sofrimento devem ser cultivadas ainda mais, e as partes que pertencem ao fim do sofrimento devem ser verificadas. Isto lhe ajuda a subir cada vez mais alto na escada até que você se encontre seguro no teto. Ai sim você poderá finalmente soltar da escada e ser totalmente livre.
    Portanto a verdadeira pergunta que nos deparamos não é a questão de Deus, fazendo um julgamento sobre quão habilidosamente ele criou a vida ou o mundo. É a nossa questão: quão habilidoso somos nós em lidar com as coisas da vida? Estamos nos apegando em modos que servem apenas para continuar o ciclo do sofrimento, ou estamos aprendendo a se apegar às qualidades parecidas com a de uma escada que eliminará o desejo e ignorância para que possamos crescer e não ter que nos apegarmos? Se lidarmos com a vida armados com todas as quatro nobres verdades, compreendendo que a vida contem ambos sofrimento e um fim para o sofrimento, há esperança: esperança que algum dia, nesta vida ainda, descobriremos o esplendor no ponto onde poderemos concordar com o Buda, “Ah sim, este é o fim do sofrimento  e estresse.”

*Texto retirado do livro Karma of Questions por Thanissaro Bhikkhu, texto original disponível em inglês em http://www.dhammatalks.org/

7 comentários:

  1. Parabéns Davi continue asim ,vc esta prestando um otimo trabalho em prol da divulgação do budismo ,sem duvida vc ira ajudar muitas pessoas inclusive eu , com os textos postados neste blog, muita obrigado amigo do Dhamma,um abraça.

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    1. Agradeço muito pelo seu comentário João, isso é muito encorajador para mim, saber que tem pessoas que realmente se interessam pelos os ensinamentos do Buda e que estão tirando do seu tempo para ler os textos que tenho traduzido e postado aqui. Obrigado por comentar. Abraços

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    2. Obrigado vc amigo ,eu adorei á descrição da sua trajetória em busca do caminho espiritual,ostextos que vc postou são excelentes,eu copiei alguns textos do seu blog e coloquei no facebook,espero não aja broblema ,continue em frente trabalhando pelo Budha Dhamma ,parabéns e um abraço.

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    3. Sim, não há problema nenhum, faça isso! Todos os textos que são postados aqui estão livres para a distribuição e reprodução, contanto que nada seja cobrado por eles. Abraços.

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  2. Olá amigo ,eu estou recomendando ,o seu blog no facebook e orkute,para ájudar , na popularização do seu trabalho em prol do Dhamma,espero que a minha pequena contribuição, seja relevante.Até mais.

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    1. Olá João, agradeço muito os seus esforços em ajudar a divulgar o Dhamma para outras pessoas, por favor, faça isso mesmo! Abração.

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