Asubha
Bhavana
Refletindo
Sobre os Aspectos Repugnantes do Corpo
Por
Davi
Coêlho
Introdução
Asubha
bhavana – cultivação (do termo Pali, bhavana, ‘cultivar’) da percepção do nojento, repulsivo, não
atraente (asubha). Um dos temas mais importantes da meditação budista,
juntamente com a recordação do fato de que todos nós iremos um dia morrer, é a
contemplação dos aspectos repugnantes e não atraentes do corpo humano. Não era
o objetivo do Buda encorajar uma atitude mórbida perante o mesmo, mas sim
ajudar a mente a perceber que este corpo não nos pertence, e ainda mais, a
diminuir e erradicar por completo o desejo sexual, já que um dos aspectos mais
importantes da vida monástica é o celibato. Enquanto que nossa cultura, pode se
dizer talvez que seja um elemento comum a todas, é a de embelezar e exaltar o
corpo, a prática de asubha bhavana, conforme ensinada pelo Buda, tem o objetivo
de vê-lo tal como ele realmente é. Não é que o Buda ignore o aspecto da beleza;
uma pessoa jovem, no ápice de sua forma física, seja homem ou mulher, é
realmente belo(a) aos nossos olhos. Mas qual o verdadeiro valor dessa beleza,
que não se tarda a desaparecer? O que este tipo de meditação vem nos relembrar
é que esta mesma beleza que o corpo exibe está conectada a um anzol, e que se a
mordemos, estaremos entrando em uma fria.
Porque
o Repulso é Necessário
Sentir repulso é
necessário para que não façamos certas coisas. Por exemplo, se não sentíssemos repulso
pelo restante de nossa comida e lixo, nada nos impediria de abrir a lata de
lixo e comer os restos do almoço que jogamos fora horas ou dias atrás. Já ouvi
casos de bebês que, quando ainda usavam fraudas, retiravam as mesmas e se
lambuzavam com suas próprias fezes. Isso acontece por causa da repulsa que o
bebê ainda não desenvolveu em relação ao resultado de suas funções biológicas.
Então vemos que este é um sentimento que nos protege ou nos impede de realizar
certos atos que não consideramos serem corretos, benéficos ou saudáveis. E como
este sentimento se aplica aos ensinamentos do Buda e à nossa prática pessoal?
O
Desejo Sexual como Obstáculo
Primeiramente, vamos
considerar – qual o objetivo do Budismo? A libertação. Libertação de
quê? Dos ciclos de renascimento que nos mantém presos à roda do Samsara – indo de
uma vida para outra sem parar. Sabemos que o que há de mais importante na
prática budista é a meditação. Não é possível chegar ao objetivo, isto é,
Nibbana, sem a meditação. E naturalmente, isto requer que a mente se afaste dos
cinco sentidos e seus prazeres, gradativamente. Isso se dá devido ao fato de
que os prazeres proporcionados pelos cinco sentidos levam a mente para o mundo
externo, eles puxam o foco da mente para fora de si. A meditação é o caminho
oposto, é trazer a atenção da mente de volta para si mesma. Portanto, torna-se
necessário que ela não esteja engajada, que seu foco não seja os prazeres
proporcionados pelos cinco sentidos. Um dos maiores prazeres que podemos
experimentar com o corpo nada mais é do que o sexo. O desejo sexual é um dos prazeres
mais difíceis a serem combatidos e um dos mais fortes que nos prendem a esta
esfera de existência sensual.
Quando era criança,
recordo-me muito bem que tinha nojo do sexo. Eu me perguntava, “Como duas
pessoas não se sentem enojadas ao trocarem saliva e tocar a língua um do outro?”
Se naquela época eu soubesse mais a respeito do que é feito durante o sexo,
creio que teria sentido mais nojo ainda. Então o que aconteceu que me fez mudar
esta percepção quando cresci e entrei na adolescência? Naturalmente, entra
aí nesta questão muitos fatores biológicos e até mesmo, creio eu, outros como
psicológicos, culturais, etc. que me fizeram enxergar o corpo do outro como
algo desejável. Como seres humanos, estamos fortemente condicionados a
sentirmos atração pelo corpo humano, seja alguém do mesmo sexo ou do sexo oposto.
Vemos o corpo do outro como algo belo, a ser desejado, possuído, usufruído.
Porém, se queremos levar nossa prática como budistas a sério, temos que começar
a pensar se este desejo é realmente bom para nós e o que podemos fazer em
relação a ele.
O
Prazer do Sexo vs. O Prazer da Meditação
Pessoas que nenhuma
experiência ou conhecimento têm acerca do Budismo podem se perguntar, “Mas qual
seria a vantagem de cortar o meu desejo sexual? Eu estaria abrindo mão de um dos maiores prazeres que posso sentir.” Sim, eu não tiraria a razão desta
pessoa. Se perder o apetite sexual seria perder a oportunidade de usufruir do
prazer que nosso corpo pode nos proporcionar, ainda mais com outra pessoa de
quem gostamos, bem, qual é a graça disso? Este tipo de pergunta é natural a
alguém que não esteja familiarizada com a meditação e não conhece os próprios
prazeres que ela mesma pode trazer. Monges e monjas que vivem bem e são felizes
em sua vida monástica são assim devido ao fato do prazer que eles mesmos obtêm
quando a mente começa a voltar para si mesma. Outro prazer e outra felicidade
surgem, mas que não estão conectados aos sentidos. Sem isso, dizia a monja Ayya
Khema, “a vida monástica se tornaria um verdadeiro fardo”. Até mesmo aqueles
que ainda não conseguiram atingir estados mais profundos de meditação (como o
próprio autor, por exemplo), podem constatar que até os estados de
tranquilidade inicial da meditação são bastante prazerosos. Aquela ardência que
sentimos ao desejar outra pessoa, todos aqueles que não experimentaram da
meditação ainda, concordam que é algo bom. Mas quando a mente começa a entrar
em concentração e tranquilidade, sentimos uma outra espécie de prazer, que não
está conectada a nenhum desejo, portanto, este mesmo prazer não nos deixa mais
sedentos ainda, mas nos satisfaz. O
prazer da meditação é um prazer satisfatório.
Então porque a mente
não se entrega completamente a ele? Porque ela ainda está fortemente
condicionada a desejar pelos prazeres dos cinco sentidos. E é ai que entra a
importância de cultivação de repulso em relação ao corpo humano. Diz-nos o próprio Buda:
“Quando
a consciência de um monge permanece frequentemente mergulhada na percepção do
não atraente, sua mente se volta contra a realização do ato sexual, se desvia,
puxa de volta e não é atraída, e então ou equanimidade ou repulsa assumem o seu
lugar.”
- -
Samyutta
Nikaya 35. 127
Repulso
Sim, Ódio Não
Uma das questões que
surgem ao falarmos deste tipo de contemplação é sobre os efeitos negativos que
ela pode ter sobre nós. Sim, de fato eles existem e foram registrados nas
escrituras budistas. Houve certa vez em que o Buda ficou sabendo que alguns
monges que haviam se isolado na floresta para se dedicarem a este tipo de
meditação sentiram tanta repulsa em relação a seus próprios corpos, que se
odiaram e cometeram suicídio. Este não é o objetivo desta prática, e de fato,
ela deve ser usada com discrição e bom senso por cada um. O objetivo primário
dela não é levar o indivíduo ao ódio de si mesmo, mas sim de retirar da mente a
ilusão que temos do corpo como algo desejável, e vê-lo de fato como ele é.
Quando olhamos para alguém que consideramos atraente, olhamos para aquela
pessoa de forma superficial e como um todo, é por isso que não conseguimos
enxergar os defeitos do corpo, apesar deste sempre estar nos mostrando seus aspectos
asquerosos. Temos que tomar banho com frequência para retirar o fedor do suor e
células mortas, nos cobrimos com perfumes, desodorantes para esconder este
fedor; após cada refeição temos de lidar com o resultado da digestão, os gases,
arrotos e fezes, ao passar do tempo o corpo ganha peso, estrias, celulites,
etc. Tudo isso tentamos esconder dos outros e de nós mesmos a todo instante. O
objetivo desta prática é tornar isso cada vez mais evidente. Mas claro, caso
alguém comece se sentir deprimido ou tenha baixa autoestima por causa deste
tipo de meditação, então ela deve ser deixada de lado e trocada por outra que
seja mais benéfica para a pessoa em questão, como a meditação de amor bondade
ou anapana sati.
Como é Realizado a Prática de Asubha Bhavana
Não sou um monge, tudo
o que aprendi até agora a respeito da meditação, aprendi com muita leitura e
assistindo a palestras de monge e monjas na internet. Portanto, não sou
qualificado para ensinar a ninguém. Contudo, acho que posso delinear aqui
alguns aspectos de como funciona esta prática, a partir do que já estudei a
respeito e a forma como eu mesmo faço.
O que segue abaixo são
algumas fotos de corpos em decomposição. Na época do Buda, e até mesmo hoje em
países cuja religião é o Budismo (ver Fig. 1), monges têm acesso a cemitérios e espaços
usados para cremação para que possam ver e contemplar o corpo humano em seus
estados mais repulsivos. Como a maioria de nós não temos esta liberdade, uma
imagem, talvez não exercendo tanto uma impressão marcante quanto ver isso
pessoalmente, ainda sim pode ser usada para contemplação. Alguns monges de anos
recentes como o Ajahn Anan Akiñcano e o Ajahn Maha Boowa, descrevem o importante
papel que tem a reflexão sobre as diferentes partes do corpo no processo de
meditação. Neste sentido, quando a mente atinge estados de tranquilidade e
concentração, a visualização exerce um caráter fundamental para a compreensão
do corpo como algo não desejável, como algo que não é nosso, e que está fadado
a morrer e se decompor.
Fig. 1 - Ajahn Sumedho com outros monges.
Em nossa meditação
diária, podemos usar o registro que fazemos destas imagens em nossas memórias
para a meditação também. Este tipo de meditação não está restrita apenas a
monges que precisam lidar com seus apetites sexuais, mas é recomendada à leigos
também. Podemos usar a prática de asubha juntamente com a prática de anapana
sati, isto é, atenção plena sobre a respiração. Focando nossa atenção sobre a
respiração, acalmamos a mente. Uma vez que esta esteja tranquila, podemos fazer
uso de nossa memória para visualizar estas imagens e contempla-las parte por
parte. Ou então, podemos fazer delas o objeto de nossa meditação tão logo
começamos. O importante, exortava o Buda, era que mantivéssemos sempre em nossa
prática a recordação dos aspectos repulsivos do corpo em mente.
E como sei que isso
está dando resultado? De novo, passamos a palavra para o Buda:
“Se,
quando a consciência de um monge permanece mergulhada na percepção do não
atraente, e sua mente ainda se inclina para a realização ato sexual, ou se o
repulso ainda não assumiu lugar [em sua mente], então ele deve realizar, ‘Eu
não desenvolvi a percepção do não atraente; não há uma distinção passo-a-passo
em mim; eu não cheguei ao fruto do desenvolvimento [mental].’ Deste modo ele
está alerto assim. Mas se a consciência de um monge permanece frequentemente
mergulhada na percepção do não atraente, e sua mente se encolhe contra a
realização do ato sexual, dela se desvia, puxa para trás e não é atraída, e ou
equanimidade ou repulso tiver assumido seu lugar, então ele deve compreender, ‘Eu
desenvolvi a percepção do não atraente; há uma distinção passo-a-passo em mim;
eu cheguei ao fruto do desenvolvimento mental.’ Deste modo ele está alerto
assim.”
- Samyutta Nikaya 35. 127
Asubha Bhavana no Cânone Pali e Outras Fontes
Asubha Bhavana no Cânone Pali e Outras Fontes
Segue aqui alguns
trechos retirados de suttas e versos proclamados pelo Buda e seus discípulos
Arahants, aqueles que conseguiram atravessar a correnteza da sensualidade, e
que podem nos ajudar em nossa reflexão dos aspectos repugnantes do corpo.
“Vamos,
monges: reflitam sobre este mesmo corpo, das solas dos pés subindo, do topo da
cabeça descendo, cercado por pele, cheio de todo o tipo de coisas imundas: ‘Neste
corpo há cabelos da cabeça, cabelos do corpo, unhas, dentes, pele, músculo,
tendões, ossos, medula óssea, rins, coração, fígado, pleura, baço, pulmões,
intestino grosso, intestino delgado, garganta, fezes, bílis, fleuma, pus,
sangue, suor, gordura, óleo da pele, saliva, muco, líquido sinovial, urina.’”
- Samyutta Nikaya 35.
127
“Incerto
é a vida: certo é a morte. Inevitável é a morte para mim. Minha vida tem a
morte como seu final. De fato a vida é uma incerteza, mas a morte é uma
certeza.”
- Da história do
Dhammapada “A Filha de um Tecelão".
.
“A comida e
bebida tão apreciadas –
O crocante a ser
mastigado, o suave a ser bebido –
Tudo entra por
uma porta,
Mas por nove
portas* tudo sai vazando.
A comida e
bebida tão apreciadas
O crocante a ser
mastigado, o suave a ser bebido –
Homens gostam de
comer em companhia,
Mas de excretar
em segredo.
A
comida e bebida tão apreciadas
O crocante a ser
mastigado, o suave a ser bebido –
Estes o homem
come com muito prazer,
E então excreta
com surpreso nojo.
A comida e
bebida tão apreciadas
O crocante a ser
mastigado, o suave a ser bebido –
Uma única noite
será necessária
Para trazer tudo
ao estado de podridão.”
- Visuddhimagga, Cap. XI, parag. 23.
*Nota:
podem
sair pelas nove portas - olhos, orelhas, narinas, boca, canal urinário, e anus
- como vários tipos de “sujeira”.
“Não irá demorar
– e em breve este corpo
Aqui irá se
deitar sobre a terra!
Rejeitado, destituído
de consciência
E tão
imprestável quanto uma tora de madeira apodrecida.”
-
Dhammapada v. 41
“Veja este belo
corpo,
Uma massa de
dores, um amontoado,
Considerado em
tão alto estima, porém miserável
Onde nada é
estável, nada persiste.
Todo decrepitado
é este corpo,
Ninho de doenças
e frágil;
Esta massa
nojenta se quebra –
De fato a vida
acaba em morte.
-
Dhammapada v. 148
As
Imagens:
As fotos a seguir foram
retiradas de vários lugares na internet. Para que elas possam ser vistas em tamanho maior, basta clicar na imagem, e em seguida clicar em cima com o botão direito do mouse até aparecer a opção 'exibir imagem' e então clicar nesta opção. Estas fotos devem ser usadas de acordo com o bom
senso de cada um:
Acesso ao Insight. Glossário
de Termos Budistas em Pali – http://www.acessoaoinsight.net/glossario.php.
Último acesso em 12/11/13.
Bharadvaja Sutta: About Bharadvaja" (SN 35.127). Traduzida
do Pali por Thanissaro Bhikkhu. Access to
Insight, 8 de Junho de 2010, http://www.accesstoinsight.org/tipitaka/sn/sn35/sn35.127.than.html#asubha.
Último acesso em 12/11/13.
Sañña Sutta:
Perceptions (AN 7.46). Traduzida do Pali por Thanissaro Bhikkhu. Access to Insight, 4 de Julho de 2010. http://www.accesstoinsight.org/tipitaka/an/an07/an07.046.than.html.
Último acesso em 12/11/13.
"Bag of Bones: A Miscellany on the Body", compilado
por Bhikkhu Khantipalo. Access to Insight,
1 de Dezembro de 2012, http://www.accesstoinsight.org/lib/authors/khantipalo/wheel271.html
. Último acesso em 12/11/13.
Muito obrigado, Davi coêlho, pelo ensaio sobre “Asubha Bhavana” carecíamos de um texto (em português) esclarecedor a respeito deste tema e você supriu essa carência. Este assunto é de suma importância num contexto geral da meditação Budista relacionada a praticantes mais avançados. Adorei seu trabalho, achei formidável. Metta!
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