terça-feira, 12 de novembro de 2013

Asubha Bhavana - Refletindo Sobre os Aspectos Repugnantes do Corpo


Asubha Bhavana

Refletindo Sobre os Aspectos Repugnantes do Corpo

Por

Davi Coêlho



Introdução

Asubha bhavana – cultivação (do termo Pali, bhavana, ‘cultivar’) da percepção do nojento, repulsivo, não atraente (asubha). Um dos temas mais importantes da meditação budista, juntamente com a recordação do fato de que todos nós iremos um dia morrer, é a contemplação dos aspectos repugnantes e não atraentes do corpo humano. Não era o objetivo do Buda encorajar uma atitude mórbida perante o mesmo, mas sim ajudar a mente a perceber que este corpo não nos pertence, e ainda mais, a diminuir e erradicar por completo o desejo sexual, já que um dos aspectos mais importantes da vida monástica é o celibato. Enquanto que nossa cultura, pode se dizer talvez que seja um elemento comum a todas, é a de embelezar e exaltar o corpo, a prática de asubha bhavana, conforme ensinada pelo Buda, tem o objetivo de vê-lo tal como ele realmente é. Não é que o Buda ignore o aspecto da beleza; uma pessoa jovem, no ápice de sua forma física, seja homem ou mulher, é realmente belo(a) aos nossos olhos. Mas qual o verdadeiro valor dessa beleza, que não se tarda a desaparecer? O que este tipo de meditação vem nos relembrar é que esta mesma beleza que o corpo exibe está conectada a um anzol, e que se a mordemos, estaremos entrando em uma fria. 

Porque o Repulso é Necessário 

Sentir repulso é necessário para que não façamos certas coisas. Por exemplo, se não sentíssemos repulso pelo restante de nossa comida e lixo, nada nos impediria de abrir a lata de lixo e comer os restos do almoço que jogamos fora horas ou dias atrás. Já ouvi casos de bebês que, quando ainda usavam fraudas, retiravam as mesmas e se lambuzavam com suas próprias fezes. Isso acontece por causa da repulsa que o bebê ainda não desenvolveu em relação ao resultado de suas funções biológicas. Então vemos que este é um sentimento que nos protege ou nos impede de realizar certos atos que não consideramos serem corretos, benéficos ou saudáveis. E como este sentimento se aplica aos ensinamentos do Buda e à nossa prática pessoal?

O Desejo Sexual como Obstáculo 

Primeiramente, vamos considerar – qual o objetivo do Budismo? A libertação. Libertação de quê? Dos ciclos de renascimento que nos mantém presos à roda do Samsara – indo de uma vida para outra sem parar. Sabemos que o que há de mais importante na prática budista é a meditação. Não é possível chegar ao objetivo, isto é, Nibbana, sem a meditação. E naturalmente, isto requer que a mente se afaste dos cinco sentidos e seus prazeres, gradativamente. Isso se dá devido ao fato de que os prazeres proporcionados pelos cinco sentidos levam a mente para o mundo externo, eles puxam o foco da mente para fora de si. A meditação é o caminho oposto, é trazer a atenção da mente de volta para si mesma. Portanto, torna-se necessário que ela não esteja engajada, que seu foco não seja os prazeres proporcionados pelos cinco sentidos. Um dos maiores prazeres que podemos experimentar com o corpo nada mais é do que o sexo. O desejo sexual é um dos prazeres mais difíceis a serem combatidos e um dos mais fortes que nos prendem a esta esfera de existência sensual. 

Quando era criança, recordo-me muito bem que tinha nojo do sexo. Eu me perguntava, “Como duas pessoas não se sentem enojadas ao trocarem saliva e tocar a língua um do outro?” Se naquela época eu soubesse mais a respeito do que é feito durante o sexo, creio que teria sentido mais nojo ainda. Então o que aconteceu que me fez mudar esta percepção quando cresci e entrei na adolescência? Naturalmente, entra aí nesta questão muitos fatores biológicos e até mesmo, creio eu, outros como psicológicos, culturais, etc. que me fizeram enxergar o corpo do outro como algo desejável. Como seres humanos, estamos fortemente condicionados a sentirmos atração pelo corpo humano, seja alguém do mesmo sexo ou do sexo oposto. Vemos o corpo do outro como algo belo, a ser desejado, possuído, usufruído. Porém, se queremos levar nossa prática como budistas a sério, temos que começar a pensar se este desejo é realmente bom para nós e o que podemos fazer em relação a ele. 

O Prazer do Sexo vs. O Prazer da Meditação

Pessoas que nenhuma experiência ou conhecimento têm acerca do Budismo podem se perguntar, “Mas qual seria a vantagem de cortar o meu desejo sexual? Eu estaria abrindo mão de um dos maiores prazeres que posso sentir.” Sim, eu não tiraria a razão desta pessoa. Se perder o apetite sexual seria perder a oportunidade de usufruir do prazer que nosso corpo pode nos proporcionar, ainda mais com outra pessoa de quem gostamos, bem, qual é a graça disso? Este tipo de pergunta é natural a alguém que não esteja familiarizada com a meditação e não conhece os próprios prazeres que ela mesma pode trazer. Monges e monjas que vivem bem e são felizes em sua vida monástica são assim devido ao fato do prazer que eles mesmos obtêm quando a mente começa a voltar para si mesma. Outro prazer e outra felicidade surgem, mas que não estão conectados aos sentidos. Sem isso, dizia a monja Ayya Khema, “a vida monástica se tornaria um verdadeiro fardo”. Até mesmo aqueles que ainda não conseguiram atingir estados mais profundos de meditação (como o próprio autor, por exemplo), podem constatar que até os estados de tranquilidade inicial da meditação são bastante prazerosos. Aquela ardência que sentimos ao desejar outra pessoa, todos aqueles que não experimentaram da meditação ainda, concordam que é algo bom. Mas quando a mente começa a entrar em concentração e tranquilidade, sentimos uma outra espécie de prazer, que não está conectada a nenhum desejo, portanto, este mesmo prazer não nos deixa mais sedentos ainda, mas nos satisfaz. O prazer da meditação é um prazer satisfatório.

Então porque a mente não se entrega completamente a ele? Porque ela ainda está fortemente condicionada a desejar pelos prazeres dos cinco sentidos. E é ai que entra a importância de cultivação de repulso em relação ao corpo humano. Diz-nos o próprio Buda:

“Quando a consciência de um monge permanece frequentemente mergulhada na percepção do não atraente, sua mente se volta contra a realização do ato sexual, se desvia, puxa de volta e não é atraída, e então ou equanimidade ou repulsa assumem o seu lugar.” 

-         - Samyutta Nikaya 35. 127

Repulso Sim, Ódio Não 

Uma das questões que surgem ao falarmos deste tipo de contemplação é sobre os efeitos negativos que ela pode ter sobre nós. Sim, de fato eles existem e foram registrados nas escrituras budistas. Houve certa vez em que o Buda ficou sabendo que alguns monges que haviam se isolado na floresta para se dedicarem a este tipo de meditação sentiram tanta repulsa em relação a seus próprios corpos, que se odiaram e cometeram suicídio. Este não é o objetivo desta prática, e de fato, ela deve ser usada com discrição e bom senso por cada um. O objetivo primário dela não é levar o indivíduo ao ódio de si mesmo, mas sim de retirar da mente a ilusão que temos do corpo como algo desejável, e vê-lo de fato como ele é. Quando olhamos para alguém que consideramos atraente, olhamos para aquela pessoa de forma superficial e como um todo, é por isso que não conseguimos enxergar os defeitos do corpo, apesar deste sempre estar nos mostrando seus aspectos asquerosos. Temos que tomar banho com frequência para retirar o fedor do suor e células mortas, nos cobrimos com perfumes, desodorantes para esconder este fedor; após cada refeição temos de lidar com o resultado da digestão, os gases, arrotos e fezes, ao passar do tempo o corpo ganha peso, estrias, celulites, etc. Tudo isso tentamos esconder dos outros e de nós mesmos a todo instante. O objetivo desta prática é tornar isso cada vez mais evidente. Mas claro, caso alguém comece se sentir deprimido ou tenha baixa autoestima por causa deste tipo de meditação, então ela deve ser deixada de lado e trocada por outra que seja mais benéfica para a pessoa em questão, como a meditação de amor bondade ou anapana sati. 
 
Como é Realizado a Prática de Asubha Bhavana 
 
Não sou um monge, tudo o que aprendi até agora a respeito da meditação, aprendi com muita leitura e assistindo a palestras de monge e monjas na internet. Portanto, não sou qualificado para ensinar a ninguém. Contudo, acho que posso delinear aqui alguns aspectos de como funciona esta prática, a partir do que já estudei a respeito e a forma como eu mesmo faço. 

O que segue abaixo são algumas fotos de corpos em decomposição. Na época do Buda, e até mesmo hoje em países cuja religião é o Budismo (ver Fig. 1), monges têm acesso a cemitérios e espaços usados para cremação para que possam ver e contemplar o corpo humano em seus estados mais repulsivos. Como a maioria de nós não temos esta liberdade, uma imagem, talvez não exercendo tanto uma impressão marcante quanto ver isso pessoalmente, ainda sim pode ser usada para contemplação. Alguns monges de anos recentes como o Ajahn Anan Akiñcano e o Ajahn Maha Boowa, descrevem o importante papel que tem a reflexão sobre as diferentes partes do corpo no processo de meditação. Neste sentido, quando a mente atinge estados de tranquilidade e concentração, a visualização exerce um caráter fundamental para a compreensão do corpo como algo não desejável, como algo que não é nosso, e que está fadado a morrer e se decompor. 

                                         Fig. 1 - Ajahn Sumedho com outros monges. 

Em nossa meditação diária, podemos usar o registro que fazemos destas imagens em nossas memórias para a meditação também. Este tipo de meditação não está restrita apenas a monges que precisam lidar com seus apetites sexuais, mas é recomendada à leigos também. Podemos usar a prática de asubha juntamente com a prática de anapana sati, isto é, atenção plena sobre a respiração. Focando nossa atenção sobre a respiração, acalmamos a mente. Uma vez que esta esteja tranquila, podemos fazer uso de nossa memória para visualizar estas imagens e contempla-las parte por parte. Ou então, podemos fazer delas o objeto de nossa meditação tão logo começamos. O importante, exortava o Buda, era que mantivéssemos sempre em nossa prática a recordação dos aspectos repulsivos do corpo em mente. 

E como sei que isso está dando resultado? De novo, passamos a palavra para o Buda: 

“Se, quando a consciência de um monge permanece mergulhada na percepção do não atraente, e sua mente ainda se inclina para a realização ato sexual, ou se o repulso ainda não assumiu lugar [em sua mente], então ele deve realizar, ‘Eu não desenvolvi a percepção do não atraente; não há uma distinção passo-a-passo em mim; eu não cheguei ao fruto do desenvolvimento [mental].’ Deste modo ele está alerto assim. Mas se a consciência de um monge permanece frequentemente mergulhada na percepção do não atraente, e sua mente se encolhe contra a realização do ato sexual, dela se desvia, puxa para trás e não é atraída, e ou equanimidade ou repulso tiver assumido seu lugar, então ele deve compreender, ‘Eu desenvolvi a percepção do não atraente; há uma distinção passo-a-passo em mim; eu cheguei ao fruto do desenvolvimento mental.’ Deste modo ele está alerto assim.” 

-  Samyutta Nikaya 35. 127
 
Asubha Bhavana no Cânone Pali e Outras Fontes
 
Segue aqui alguns trechos retirados de suttas e versos proclamados pelo Buda e seus discípulos Arahants, aqueles que conseguiram atravessar a correnteza da sensualidade, e que podem nos ajudar em nossa reflexão dos aspectos repugnantes do corpo. 

“Vamos, monges: reflitam sobre este mesmo corpo, das solas dos pés subindo, do topo da cabeça descendo, cercado por pele, cheio de todo o tipo de coisas imundas: ‘Neste corpo há cabelos da cabeça, cabelos do corpo, unhas, dentes, pele, músculo, tendões, ossos, medula óssea, rins, coração, fígado, pleura, baço, pulmões, intestino grosso, intestino delgado, garganta, fezes, bílis, fleuma, pus, sangue, suor, gordura, óleo da pele, saliva, muco, líquido sinovial, urina.’” 

- Samyutta Nikaya 35. 127

“Incerto é a vida: certo é a morte. Inevitável é a morte para mim. Minha vida tem a morte como seu final. De fato a vida é uma incerteza, mas a morte é uma certeza.” 

- Da história do Dhammapada “A Filha de um Tecelão".
 .
“A comida e bebida tão apreciadas –
O crocante a ser mastigado, o suave a ser bebido –
Tudo entra por uma porta,
Mas por nove portas* tudo sai vazando.
A comida e bebida tão apreciadas
O crocante a ser mastigado, o suave a ser bebido –
Homens gostam de comer em companhia,
Mas de excretar em segredo.
A comida e bebida tão apreciadas                                                
O crocante a ser mastigado, o suave a ser bebido –
Estes o homem come com muito prazer,
E então excreta com surpreso nojo.
A comida e bebida tão apreciadas
O crocante a ser mastigado, o suave a ser bebido –
Uma única noite será necessária
Para trazer tudo ao estado de podridão.”  

- Visuddhimagga, Cap. XI, parag. 23. 

*Nota: podem sair pelas nove portas - olhos, orelhas, narinas, boca, canal urinário, e anus - como vários tipos de “sujeira”. 

“Não irá demorar – e em breve este corpo
Aqui irá se deitar sobre a terra!
Rejeitado, destituído de consciência
E tão imprestável quanto uma tora de madeira apodrecida.”

- Dhammapada v. 41

“Veja este belo corpo,
Uma massa de dores, um amontoado,
Considerado em tão alto estima, porém miserável
Onde nada é estável, nada persiste.
Todo decrepitado é este corpo,
Ninho de doenças e frágil;
Esta massa nojenta se quebra –
De fato a vida acaba em morte.

- Dhammapada v. 148

As Imagens:
As fotos a seguir foram retiradas de vários lugares na internet. Para que elas possam ser vistas em tamanho maior, basta clicar na imagem, e em seguida clicar em cima com o botão direito do mouse até aparecer a opção 'exibir imagem' e então clicar nesta opção. Estas fotos devem ser usadas de acordo com o bom senso de cada um:


 















 




























 


















































 



 








































Referências: 

Acesso ao Insight. Glossário de Termos Budistas em Pali – http://www.acessoaoinsight.net/glossario.php. Último acesso em 12/11/13. 

Bharadvaja Sutta: About Bharadvaja" (SN 35.127). Traduzida do Pali por Thanissaro Bhikkhu. Access to Insight, 8 de Junho de 2010, http://www.accesstoinsight.org/tipitaka/sn/sn35/sn35.127.than.html#asubha. Último acesso em 12/11/13. 



Sañña Sutta: Perceptions (AN 7.46). Traduzida do Pali por Thanissaro Bhikkhu. Access to Insight, 4 de Julho de 2010. http://www.accesstoinsight.org/tipitaka/an/an07/an07.046.than.html. Último acesso em 12/11/13.


"Bag of Bones: A Miscellany on the Body", compilado por Bhikkhu Khantipalo. Access to Insight, 1 de Dezembro de 2012, http://www.accesstoinsight.org/lib/authors/khantipalo/wheel271.html . Último acesso em 12/11/13.


Um comentário:

  1. Muito obrigado, Davi coêlho, pelo ensaio sobre “Asubha Bhavana” carecíamos de um texto (em português) esclarecedor a respeito deste tema e você supriu essa carência. Este assunto é de suma importância num contexto geral da meditação Budista relacionada a praticantes mais avançados. Adorei seu trabalho, achei formidável. Metta!

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